Há muito quem se irrite e insurja contra o uso da palavra estória. F.J.V. é um exemplo, mas há muitos mais defensores aguerridos da lusa língua.No exemplo citado há senso, do qual no entanto eu pareço estar desprovida.
Ora eu, que muito me irrito com várias coisas (pois que sou naturalmente dada à irritação própria das criaturas pouco evoluídas - provoca-me urticária ouvir uma mulher dizer "obrigado", quando a palavra me é dirigida costumo responder que não se sinta obrigado a nada; tomo kompensan quando ouço falar na perca, mormente nos telejornais, entretanto o meu namorado olha-me de lado desejando que eu não perca a paciência e ouve-me repetir pela décima terceira vez nesse mês que a perca é um peixe, porra!, e em seguida toma ele um kompensan, que com o estômago não se brinca)- dizia eu, adoro a palavra estória, usando-a porém só em certos contextos - básica e essencialmente escrevendo ficção.
Em dicionários antigos a palavra tinha direito a lugar. Alguém houve que sugeriu até a sua adopção para uma mais eficaz diferenciação do termo história,algum admirador do anglicismo, perturbado com a louca e abundante polissemia presente na língua portuguesa. No fundo o tipo queria seguir o exemplo do inglês, com a distinção entre history e story. Já eu adoro essa polissemia, é fascinante e enriquecedora (parece contradição, mas sigamos adiante), até porque o facto de em português (bem mais do que em diversas outras línguas) uma palavra poder significar uma série de coisas não impediu que complicássemos ainda mais a vida do pobre estrangeiro que pretende,com carinhosa obstinação, aprender a língua lusa, ai pois não. Damos-lhe com força nos sinónimos, imensos, intermináveis, usando uma carrada de termos diferentes para nos referirmos à mesma coisa. Voltando ao tal senhor que quis a distinção história/estória: sim, é óbvio, o gajo pretendia que se usasse história para a ciência, naturalmente, e estória no sentido narrativo, particularmente para designar a de cunho tradicional, popular. A certo ponto, já os dicionários, continuando a incluir o termo estória, comandavam que consultássemos a história, letra h, vá, vire as páginas do calhamaço. Certo, certíssimo, tudo bem por mim. Teria estado tudo bem para parte dos linguistas se o termo estória tivesse permanecido dentro de um domínio de código específico e restrito. Dos registadores da literatura de cunho oral, talvez... João Guimarães Rosa, porém, ajudou na fuga da prisioneira, publicando Primeiras Estórias (1962), Tutaméia, subtítulo Terceiras Estórias (1967) e Estas Estórias (1969, já a título póstumo), escrevendo, sobranceiro, "estória não quer se tornar história". Ah, gentinha desobediente...
Rosa é apenas um exemplo, entre muitos, muitos outros. Na verdade, essa contenda não se inicia no Brasil. Na época medieval, a palavra era grafada de muitas formas diferentes, como é normal que aconteça numa língua que ainda não sedimentou normas ortográficas - historia, hestoria, estoria, istoria, estorea (assim mesmo, sem acentos, deixem lá as almas dos copistas medievais em paz). Inadmissível toda esta confusão, clamam os linguistas. Bem, os meus alunos nunca se mostraram confusos em relação a tudo isto, e as estórias surgiram-lhes diantes dos olhos, nos manuais que politicamente correctos inserem autores lusófonos de outras paragens. Se explicarem, eles entendem. Garanto. Os que recordo em particular eram garotos de doze anos. E não passaram a escrever estória...
Um aluno que use em exame escrito a estrutura sintáctica de Saramago será muito provavelmente chumbado; se tiver o azar de tentar sua sorte escrevendo num estilo semelhante ao de Lobo Antunes verá a sua caligrafia sublinhada com irregulares linhas vermelhas de censura, a não ser que se limite ao lobo antonismo das crónicas. Misturo alhos e bugalhos, talvez.
O que sei é que coexistem em mim multiplicidades lusófonas, cada qual com lugar a registo próprio.Quando escrevo pouco controlo, são as personagens que me escolhem, não eu a elas, se me atrevo se quer a lhes querer mudar os nomes que me sugerem, insurgem-se, mostram-me as linhas das suas mãos e destinos, que tenho de ler e seguir. E se tiverem estórias, além de histórias, para me contar, não serei certamente eu a calá-las. Até porque eu gosto de estórias. E de estoriar. E gosto muito de história. E de histórias, também.
Actualização: escrevi tanto e ainda assim omiti coisas essenciais (para mim, claro). Continue-se nos comentários :)
Infâmia! com tanto paleio, como diria a Carolina, do Sardinheiras, não mencionei nomes com quem cresci, e que me fizeram crescer. Como me atrevi a deixar de fora o Luandino Vieira... e as Estórias Abensonhadas do Mia Couto?