Tuesday, May 31, 2005

Lírica amorosa vs. lírica religiosa


taj mahal
Originally uploaded by Kanuthya.

Chamava-se, parece, Arjumand Banu Begam, mas o marido, sabendo bem da arbitrariedade do signo linguístico, preferia chamá-la Mumtaz Mahal, a luz do palácio, ou a eleita do palácio. Uma ode em mármore a essa mulher, um poema de pedra paradoxalmente viva, que muda de tonalidade conforme a luz que a banha. Ouvimos sempre que o seu lírico autor teria sido o imperador Shah Jahan, o tal apaixonado.

Vêm-nos agora dizer que o palácio é muito anterior a Shah Jahan, de origem hindu, e não mulçumana, construído talvez em 1155 A.C. por um tal Raja Paramardi, como um templo Vedic, que Shah Jahan o terá adquirido e posteriormente escolhido como túmulo para a sua esposa favorita.

A quem de direito, obrigada por esta visão.

Aos contadores de histórias e estórias, gratos pelo sonho.

Monday, May 30, 2005

Original Crafting

Prepara-se um texto menor sobre coisas maiores, como um amor que origina um Taj Mahal, por exemplo, um poema de mármore perpétuo. Entretanto cheira a queimado, a modernice (melhor, a proibição de aparelhos a gás neste local - seria mais urgente preocuparem-se com questões higiénicas, mas pronto) arranca-me aqui o meu velho fogãozinho a gás, impõem-me as modernas placas de cerâmica. A ausência dos bicos e da chama é fatal, não se vêem labaredas que preparam um café cheiroso. E assim fica esquecido um pano velho de cozinha, que deixa assim de ser um vulgar pano de cozinha e ganha um picot original e que não aumentou a tendinite em serões de crochet. E tanta coisa para a simples constatação de que estou definitivamente caduca...

Manifesto contra o sono que vem a horas indesejadas

Em condições normais, isto é, antes de deixar os vampíricos hábitos de lado, aquele livrinho teria sido devorado numa noite, mas acabou por se prolongar, vítima das pálpebras cansadas. Depois de inícios de noites a vogar entre as águas de Vian, com O Arranca Corações, poder-se-á ainda esperar alguma sanidade mental?

Friday, May 27, 2005

Um dos que consta sempre nos tais caderninhos, D.

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel

De mais que tua pele ser pele da minha pele

David Mourão-Ferreira

Thursday, May 26, 2005

Il quadernino

Deram-lhe um, pequenino, forrado em tecido acolchoado, garrido e da cor que com ela condiz, vermelho escuro, como o sangue. Veio no tamanho exacto para lhe fazer sempre companhia, para onde fosse. E ela rabiscou lá palavras alheias, muito mais que as suas, as rimas ou ausência delas na poesia que as dispensa.

Foi este o primeiro presente que fez em réplica para ele, anotando as primeiras entradas de um caderninho que deveria ou poderia ter sido continuado vida fora, a duas caligrafias entrelaçadas. Jaz lá, não está morto nem arrefece, não é vermelho fogo, mas queima.

Constatação inútil

Odeio códigos de barra.

Out of Order, by Elfi Kaut

Tuesday, May 24, 2005

Tento escrevinhar por aqui, mas sempre amei o cheiro do papel e suas texturas, a forma como a tinta desliza, o toque das canetas que se tornam extensões de nós.
Estarei longe da minha língua primeira, ou fará ela parte inseparável de mim? Tremo perante a possibilidade do seu esquecimento, rodeio-me de livros e projectos de nunca deixar as letras lusas de parte, tal é o pavor do erro, muito além do ortográfico, do erro do esquecimento da mais pura poesia, que talvez só nos nossos irmãos irlandeses tenha par, dos jogos de possibilidades infinitas, tal como aqueles do amor, sempre reinventado, sempre ultra sentido.

Monday, May 23, 2005

Negação

Não há folhas secas de um Outono que se quer perpetuado para emoldurar, botinhas de bebé tricotadas em frente à televisão, ramos secos de alfazema a perfumarem a despensa de trastes, cinzeiros de vidro coloridos e caixas metálicas de bom gosto que aguardem fumadores de cigarrilhas. Não há calendário kitsch onde apontar os aniversários alheios com círculos a marcador de feltro, gelado de limão no congelador, não há miúdos a correr no jardim. Não há labrador nem vedação em madeira branca, garagem com recordações de infância enfiadas em caixotes cobertos de pó, prestações de seguro por pagar, lava-loiças de alumínio brilhante, discos ordenados por ordem alfabética.

Será mesmo para rir ou sorrir no final? Porque eu tenho sempre vontade de chorar quando a ouço.

A ouvir cantada pelo Fausto.

CARTA DUM CONTRATADO

Eu queria escrever-te uma carta, Amor,
Uma carta que dissesse deste anseio de te ver
Deste receio de te perder
Deste mais que bem querer que sinto
Deste mal indefinido que me persegue
Desta saudade a que vivo todo entregue...
Eu queria escrever-te uma carta, Amor,
Uma carta de confidências íntimas,
Uma carta de lembranças de ti, de ti
Dos teus lábios vermelhos como tacula
Dos teus cabelos negros como dilôa
Dos teus olhos doces como macongue
Dos teus seios duros como maboque
Do teu andar de onça e dos teus carinhos
Que maiores não encontrei por aí...
Eu queria escrever-te uma carta, Amor,
Que recordasse nossos dias na capopa
Nossas noites perdidas no capim
Que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
O luar que se coava das palmeiras sem fim
Que recordasse a loucura da nossa paixão
E a amargura da nossa separação...
Eu queria escrever-te uma carta, Amor,
Que a não lesses sem suspirar
Que a escondesses de papai Bombo
Que a sonegasses a mamãe Kiesa
Que a relesses sem a frieza do esquecimento
Uma carta que em todo o Kilombo
Outra a ela não tivesse merecimento...
Eu queria escrever-te uma carta, Amor,
Uma carta que ta levasse o vento que passa
Uma carta que os cajus e cafeeiros
Que as hienas e palancas
Que os jacarés e bagres
Pudessem entender
Para que se o vento a perdesse no caminho
Os bichos e plantas, compadecidos de nosso pungente sofrer
De canto em canto, de lamento em lamento, de farfalhar em farfalhar
Te levassem puras e quentes
As palavras ardentes, as palavras magoadas da minha carta
Que eu queria escrever-te, amor

Eu queria escrever-te uma carta...
Mas, ah, meu amor, eu não sei compreender
Por que é, por que é, por que é, meu bem
Que tu não sabes ler
E eu - Oh! Desespero! - não sei escrever também!

António Jacinto (1924-1991)

Sunday, May 22, 2005

In viaggio I

A garota aportou numa Portela perdida, pela mão de uma mãe leoa destroçada, pela perda da sua terra, pela incerteza, pela busca da família espalhada em fuga aos tropeções, sem pré-aviso, como todas as catástrofes o são. Nos corredores cinzentos que acolhem as gentes armadas em pássaros, uma familiar jovem, que via chegar milhares, que não compreendia, que chorava. Desse primeiro tempo ficou a essa garota o refúgio na casa de uma tia-avó Ana, na baixa lisboeta, a ironia do nome de uma rua de felizmente ex-colónias, com o seu marido louco, a quem ameaçava com uma batedeira de bolos em pleno funcionamento, quando os disparates a exasperavam além da conta que uma algarvia amarafada pode aguentar. E ficou a visão, antes da garota ter sequer dois anos de idade, de um quarto minúsculo, atolhado de retalhos de tecidos de todas as cores, sobras de encomendas finas de senhoras, um mundo de trapos, como os que a rodeavam, vidas em farrapos, e o agradecimento de pão para as suas bocas, quando o pão da alma falta. No meio do caos, há essa visão, da belíssima Ana, que sorri, abraça, pega em retalhos e faz vestidos para bonecas inexistentes da garota.

Thursday, May 19, 2005

Ao mercador, sem comércio, só dádiva

Hoje colocarias a fronte sobre o meu regaço e eu cantaria baixinho, buscaria palavras minhas e alheias, para tapar as tuas feridas abertas, as tuas repetidas esperas de amor. E faria com que te zangasses comigo, quando te dissesse que não o são de facto, de amor, são um braço perpetuamente estendido em busca de algum alguém que procuras reconhecer nesta vida, tu que apenas nesta crês. E talvez não faças mal. Devemos viver cada uma como sendo a única oportunidade.

Wednesday, May 18, 2005

Emprestado pelo Caetano


Salgado2.2
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Gente é para brilhar, não para morrer de fome.

Tuesday, May 17, 2005

Desculpem lá mas...

...como se diria na minha terra de adopção, depois de até ter mudado o nome de um blog (é a arterioesclerose galopante): links dum cabrão.

Na impossibilidade de...

...aqui colocar a obra de arte que o Miguel Esteves Cardoso fez a partir de duas línguas pouco fraternas...

Quando fores velha e grisalha,
E cambaleares de sono junto à lareira,
Pega neste livro e lê-o lentamente,
E sonha com o suave olhar
Que os teus olhos e suas profundas sombras
tiveram um dia.

Quantos amaram os teus momentos de graça pura
E amaram a tua beleza com amor falso ou verdadeiro
Mas apenas um homem amou a tua alma peregrina
E amou as mágoas do teu rosto enquanto este se transmutava.

E inclinando-te sobre o ferro incandescente
Murmura, com alguma tristeza, como o amor partiu
E galgou as montanhas
E escondeu o seu rosto
Entre uma multidão de estrelas.

W. B. Yeats

Monday, May 16, 2005

Este senhor escreveu...


Yeats
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When you are old and gray and full of sleep
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true;
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face.

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how love fled
And paced upon the mountains overhead,
And hid his face amid a crowd of stars.

W. B. Yeats

Tenta...

...deambular entre páginas de João Lobo Antunes, mas antes do sono refugia-se sempre na ficção. Não que tal seja alimento para os sonhos. Esses são surrealistas, como a vida.

Thursday, May 12, 2005

Mai addio. A dopo...


Nude in Chair by Elena Morzov
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Jogas fora um livro, uma boneca de pano, uma peça de lingerie azul-celeste, um tecido bordado com estrelas e um poema que só passou a fazer sentido quando lido por ti.

Como lavas um odor entranhado na epiderme da alma?

Tuesday, May 10, 2005

De beleza pura II


fetus (Da Vinci)
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Em que outro universo que não de líquido amniótico está suspenso o teu perispírito, Clara?

Sunday, May 08, 2005

Intimacy Draft


07_Drawing_II_jpg
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Therefore, slowly uncover your deepest secret, your most inner hidden self-made craft, and trust me as its faithful keeper.

Thursday, May 05, 2005

... II


joquinha1
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Para compensar, roubo a frase à So : segundo o último comunicado oficial, a Joca vai ser canonizada pelo Vaticano Canino. Não, ela não é budista, por um simples pormenor: a gula...

A propósito disto - I


fred1
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Fica sabendo, senhor Fred, que és responsável pela anulação do sonho da white fence que habita em todos nós!

let's go grandpa


let's go grandpa
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As tuas mãos não eram assim, não.
Mas continuo a sentir a tua suave presença.

Wednesday, May 04, 2005

A janela lá longe

Eu costumava adormecer com ondas a desmaiar na areia.

Momento piroso

The bird with the thorn in its breast, it follows an immutable law; it is driven by it knows not what to impale itself, and die singing. At the very instant the thorn enters there is no awareness in it of the dying to come; it simply sings and sings until there is not the life left to utter another note. But we, when we put the thorns in our breasts, we know. We understand. And still we do it. Still we do it.

Colleen McCullough

Grazie, Simone :)

fait divers

Nas imediações todos se parecem ter lembrado de fazer obras, levantando cercas (não, isto era o que os meus olhos pediam, são muros mesmo), aumentando casas, reformando garagens. Vou pregar uns pregos e pendurar uns quadros e já volto.

Tuesday, May 03, 2005

Don't fear for my sanity - part II

Fizeste-me recordar o perfeito horror recontado numa carrinha branca. Dei-te o cognome do meu chá preferido, estás exactamente na terra das plantações, mas chamo-a com o nome nativo da minha terra. Bissapa.
Como sobreviver ao terror? Como vivê-lo. Como viver o momento em que nos apontam uma arma e querem obrigar a esmagar o fruto de nosso ventre (ou de qualquer outro, for that matter) com um pilão? Como continuou vivendo moribunda a mulher a quem arrancaram um bebé quase recém-nascido, o viraram de cabeça para baixo, e, pegando em cada uma das tenras pernas, o dividiram ao meio?