Monday, May 23, 2005

Será mesmo para rir ou sorrir no final? Porque eu tenho sempre vontade de chorar quando a ouço.

A ouvir cantada pelo Fausto.

CARTA DUM CONTRATADO

Eu queria escrever-te uma carta, Amor,
Uma carta que dissesse deste anseio de te ver
Deste receio de te perder
Deste mais que bem querer que sinto
Deste mal indefinido que me persegue
Desta saudade a que vivo todo entregue...
Eu queria escrever-te uma carta, Amor,
Uma carta de confidências íntimas,
Uma carta de lembranças de ti, de ti
Dos teus lábios vermelhos como tacula
Dos teus cabelos negros como dilôa
Dos teus olhos doces como macongue
Dos teus seios duros como maboque
Do teu andar de onça e dos teus carinhos
Que maiores não encontrei por aí...
Eu queria escrever-te uma carta, Amor,
Que recordasse nossos dias na capopa
Nossas noites perdidas no capim
Que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
O luar que se coava das palmeiras sem fim
Que recordasse a loucura da nossa paixão
E a amargura da nossa separação...
Eu queria escrever-te uma carta, Amor,
Que a não lesses sem suspirar
Que a escondesses de papai Bombo
Que a sonegasses a mamãe Kiesa
Que a relesses sem a frieza do esquecimento
Uma carta que em todo o Kilombo
Outra a ela não tivesse merecimento...
Eu queria escrever-te uma carta, Amor,
Uma carta que ta levasse o vento que passa
Uma carta que os cajus e cafeeiros
Que as hienas e palancas
Que os jacarés e bagres
Pudessem entender
Para que se o vento a perdesse no caminho
Os bichos e plantas, compadecidos de nosso pungente sofrer
De canto em canto, de lamento em lamento, de farfalhar em farfalhar
Te levassem puras e quentes
As palavras ardentes, as palavras magoadas da minha carta
Que eu queria escrever-te, amor

Eu queria escrever-te uma carta...
Mas, ah, meu amor, eu não sei compreender
Por que é, por que é, por que é, meu bem
Que tu não sabes ler
E eu - Oh! Desespero! - não sei escrever também!

António Jacinto (1924-1991)

1 comment:

Carolina said...

Coisa boa esta dos BLOGS!!!
Nunca tinha lido isto!(ou ouvido)
Que maravilha!!!
Não sorri,não ri,nem chorei,mas senti um balão a encher-se no coração.Ou seria o próprio coração?
E eu a pensar que já o tinha domado!...