Wednesday, May 31, 2006



Quem diria que o regresso a um autor dos meus 12, 13 anos, seria assim. Nessa idade os mais procurados nas estantes eram obviamente os que pareciam mais picantes. Os livros falam, acreditem. E assim, A Romana, de Alberto Moravia, sussurrava, tentando-me. Ora eu sempre fui bem fraca de resistência. Nesse tempo, aquela escrita desiludiu-me, mas já não recordo o porquê. Tantos anos depois (e escrevo-o sem a pieguice dos que se lamentam contínua e suspirosamente sobre o tempo que corre, ele não me pesa), Moravia volta a visitar-me, sem convite, através de uma prenda de amor passado. Ainda amuada com Moravia e não com o amor, fui compelida a deixá-lo na estante durante um par de anos. Mas, por fim, A Atenção bramou isso mesmo, atenção, e assim mergulhei em estórias dentro de estórias que têm tanto de comuns como de perturbantes. E como redenções são acolhidas por esta escriba, A Romana será revisitada com atenção.

Tuesday, May 30, 2006



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Pérola de Manuel Rui



"Com o riso de fiscal contente de missão cumprida, ficou ainda um bocado de indicador na testa a arrumar inteligência"

in Manuel Rui, Quem Me Dera Ser Onda

Friday, May 26, 2006

...

Bissapa fez a sua entrada em África pelo Índico, distante, como tudo é distante lá, de uma distância que se torna difícil dar a compreender na Europa, distante também da minha África Atlântica. Também não é esse o nome com que a chamam, Bissapa é nome só meu, folhas de chá príncipe quer dizer, eu te baptizo a meu bel prazer.
A terra não é só banhada pelo Índico, é inundada pelas desgraças de quem não quer ver, de quem não quer saber, de quem não quer entender nada, de meninos perseguidos pela sombra que neles se entranha de doença de nome feio, sujo, que se tenta não pronunciar como se por osmose também de nós ela se pudesse apoderar. São deles, desses meninos, as mãos que colhem delicadamente, pedindo autorização ao areal, os búzios, que depois entrelaçam.
A Bissapa traz até mim um pedaço desse Índico, e cada peça é um menino, uma mão de menino estendida para mim, oferta prodigiosa como só pode realizar quem tem pouco para dar aos olhos do mundo. Como os meninos da minha terra.Estendo a capulana na parede branca, ao cimo das escadas, cada subida uma viagem para os olhos da alma. Pegando com cura no colar, solta-se um búzio, solitário, os outros olham-no frágeis, ainda agarrados ao frágil fio que os sustenta, no que se libertou não encontro motivo regido pela física que o justifique. Coloco-o de parte, não o misturo com nenhum dos despojos marítimos pelos quais tenho obsessão e que recolho, também eu no meu ritual respeitoso, pedindo autorização aos areais, não fica sepultado em nenhuma vala comum de recordações, tem o seu lugar único. Espero que, quando do frágil fio se soltou, tenha tido uma mão como a da Bissapa para ampará-lo lá, no outro lado.

Wednesday, May 24, 2006

Coisas Atrasadas II

Para variar, a capa do meu é diversa, desadequada neste caso, ao contrário do que se poderia pensar, já que de cegueira se fala. Mas esta é uma cegueira branca, a população vive com o olhar num permanente sol de meio-dia que ofusca e nem para lhes permitir o sono se retira, misericordiosa. Ah...excelente compra a de volumes publicados pelo DN, capas sóbrias e marcador de nastro.





Pois é, Sam Espinosa, judeu que salva um Cristo perdido na mediocridade do mundo, sempre me pareceu que os factos naturais eram demasiado lógicos e ordenados para que existissem coincidências. Na estória tresloucada que faz o detective viajar meio mundo, há paragem significativa em Moçambique, tudo a ver com o que se seguirá neste recanto desordenado e patético em que encravo e encrenco palavras.

Monday, May 22, 2006

Coisas Atrasadas I

The Corpse Bride, de Tim Burton





Pay It Forward, de Mimi Leder

Revisitação de fim-de-semana

Friday, May 19, 2006

Trás-os-Montes


Primeiro o caminho, longo, longuíssimo, sem fim. Estranha sensação num país de dimensões tão reduzidas. Quando comecei a viajar pelo país em que me refugiei, o primeiro assombro foi o da diversidade. De região em região abre-se sempre a porta para um mundo diferente.
A ordem veio da avó, e numa família matriarcal, embora algo disfarçada, não é boa ideia contrariar a saia- mor. Queria tanto que fossemos à minha terra… diz ela, com ar inocente. Talvez a loucura da família tenha sido acentuada por esse senso de não pertença, de nascer num local e tomar outros, em continuum, como seus, de forma a que já não se sabe realmente de onde se é. Nascida no Brasil, passada por e baptizada em castelhano numa Argentina já desaparecida, a Maria de la Concepcion voltou ainda menina para a terra de seus pais, que por seu lado já nem sabiam bem se eram portugueses, galegos ou uma espécie híbrida com sangue de Léon e, enfim, reconheçamos apesar do horror, Castilla. Pois, verdade, está bem confuso o texto.
Quando nesta família de desvairados se decide fazer algo, há que saber que, seja um mero almoço dominical ou um casamento, seremos sempre muitos. A mim coube-me viajar num carro alheio com um tio fantástico com ar de cigano, com direito a dente de ouro e tudo. Sobrevivi às curvas do Minho, de onde partimos, e já ia mais sossegada numa das estradas mais mortíferas do país (os portugueses detém os recordes mais macabros do planeta). Mas aquilo não tinha fim possível, parecendo-me na altura mais longa a viagem que a travessia aérea até ao continente americano. A desolação, a paisagem agreste. Primeiro vem o sentido do nome. É mesmo trás os montes, posso confirmá-lo. Nada como experiência em campo para compreender melhor episódios estudados em aulas de história. É provavelmente a área menos habitada do país.
Saídos da auto-estrada, serpenteando por estradas estreitas, o sorriso do tio condutor ilumina-se, e começa a explicar-me com ar orgulhoso as inúmeras cruzes de pedra plantadas na beira da estrada. Eu, que já imaginava um profundo sentido religioso do povo, sou informada de que as cruzes assinalam o local de morte de pessoas. Começa a fazer-se luz. A zona desértica é também a com maior índice proporcional de assassinatos do país (pelo menos até há algum tempo atrás, era assim). O riacho passa nas minhas terras e não nas tuas, moveste a cerca para o teu lado, desgraçado, toma lá para aprenderes. Ora bem, não é à toa que o império romano teve tantas dificuldades em anexar o noroeste da Península Ibérica. Em 27 a.c., a Lusitânia e maior parte da península eram de domínio romano, mas só em 216 o povo guerreiro que vivia nas montanhas pousou armas.
O sangue quente das gentes assustou-me menos que a condução do meu tio. Sentia-me protegida por uma tia avó que bradava na ausência de coisas essenciais como a presença de uma salada que faltava à refeição. Quando ela começou a falar, tornámo-nos figuras respeitadas na terra. Ariscos ao primeiro contacto, calorosos quando detectam que somos inofensivos. Quer dizer, quase.
A carne mais deliciosa jamais provada, as inúmeras fotos de cães (meu irmão devia fotografar algo do nosso agrado e, à falta de modelos humanos, os cães foram perfeitamente fotogénicos), o único irmão sobrevivente da minha adorada bisavó, exemplar único dessa raça dura, as casas de pedra escura, o pressentimento da magnífica presença de lobos, com quem minha avó teve encontros que a assustaram para esta e outras vidas. Enfim chegados a Avelanoso, essa terra que não se sabe bem se ainda fica em Portugal, escutando um novo dialecto, encontrámos a casa onde a família viveu, antes de partir (não adianta, são bichos irrequietos mesmo) novamente, desta vez para quentes paragens africanas. Minha avó decidiu não lá passar muito tempo, sobretudo depois de uma antiga vizinha, que se lembrava dela em pequena, lhe ter dito que estava muito gorda. No nosso próximo regresso, evitará passar por aquela rua.

Wednesday, May 17, 2006

mother dear, the world's gone cold, no one cares about love anymore


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Jeff Buckley - What Will You Say?

Monday, May 15, 2006

Os Papéis do Inglês II

"Namibe:

(tensa pele de boi seca sem sal)

(onde não é a terra que vem ter ao mar, é o mar que encosta nela)

(a das pálpebras dos rios rasgadas na fronte do nada)

(a do hálito do sal, às seis da tarde, em Julho)

(a do meio-dia despovoado e ocluso)

(a que indiferente atenta e nunca esquece)

(a que não diz adeus, só viu chegar)



(o ponto e a coma de um qualquer destino)"

Ruy Duarte de Carvalho

Imagens: wikipedia, webshots, francesco buresti e elisabetta martina (3 e 4), thierry janusikiewicz, trekearth, unkmown e jorge silva pinto

Friday, May 12, 2006

raios

A urgência da escrita vai obrigar ao uso de uma tala e tem atrasado a segunda parte d'Os Papéis do Inglês. Mas ela chegará.

Wednesday, May 10, 2006

Os Papéis do Inglês I

O livro veio até mim de forma estranha. Amanheceu numa divisão da casa grande, discretamente pousado, sem que ninguém o reclame ou saiba como raio foi ali parar. O que se segue é arrancado sem autorização prévia ao sr. Ruy Duarte de Carvalho. (Pois, é parecido com o outro). Primeiro a poesia a invadir a prosa falando de Angola. Na parte II, vem sozinha Namibe, antiga Moçâmedes (pelo menos livrou-se de receber nomes de governadores).

(esfinge sem frente, portentosa e intacta)


(mãe cativa de uma prole ansiosa mais dada à praça que à casa)

Imagens: trekearth.com

Sunday, May 07, 2006

Conclusões alheias


"Descubrí la fotografía y ahora puedo matarme; no tengo más para aprender". ...
Picasso

Thursday, May 04, 2006

Someday you'll paint me, I know


klimt-the-kiss
Originally uploaded by Kanuthya.

Numa noite tão escura. Haveria estrelas, decerto, no meu Alentejo há sempre estrelas. Como na minha África. Todos os africanos desterrados gostam do Alentejo. Devolve-lhes os grandes espaços abertos, a linha infinda do horizonte, a certeza de que a vida é Maior.

Pode bem ter sido de dia, mas em mim era noite. Eu, que fui noctívaga a maior parte da minha vida, usando tal imagem. Ah, se era noite.

Tu vieste, Rita. Trouxeste numa mão uma reprodução do Beijo de Klimt, noutra uma laranja flor de cera, que se empunha como a um moinho de vento, dos que o meu Avô me fazia - corria todo o terraço desafiando ventos com o moinho na mão.

- És personagem de tragédia grega, tu.

Não tive mais pena de mim por isso. Nas tragédias gregas a protagonista é soterrada pela vida sem compreender porquês. E tu, menina do teatro em corpo de vinte anos, espírito ancião, disseste-o num assombro de olhos molhados, não húmidos, molhados eram. Olhaste para mim e viste-me. E compreendeste. Não o esquecerei.

O Klimt está no topo das escadas da casa que habito hoje. Não está pendurado, não tenho a compulsão de dar aos objectos as funções e localizações mais costumeiras.

Agora partes. Sei bem que não é agora, Rita; mas também sei que sabes que sou incurável melodramática. Sei também que sabes que não é a quiromância que me acompanha, são as outras coisas.

Levas numa mão um vinil (perdoa, mas pareceu-me mais romântico esse escuro objecto - amo negro, como bem sabes - luzidio, escorregadio) de Gardel.

Não te vou falar de fugas, niña mia, nada temas. De mim, com todo o escuro que já me viste, parte outro tom em tua direcção. Mordo os lábios e ponho na prateleira para futura ocasião um vermelho sangue - há cor mais bela?, redundante questão, se para todas elas pode haver um sim - e faço as pazes com o rosa.

Tuesday, May 02, 2006

Chile Chile Chile

www.elasticspace.com

No deserto mais árido do planeta florescem numa só aurora do ano rosas rubras, para perecerem ao meio dia. Esta é uma das Histórias Marginais - título original - que Sepúlveda conta no belíssimo livro As Rosas de Atacama. Autor andarilho que já escrevinha há tanto tempo, e só agora lido. Está em curso a preparação do seu altar.