Friday, November 19, 2004

Empréstimo de Clarice e Chico, na voz de sempre

Eu sei de muita coisa que não vi
E vocês também, eu sei
Não se pode dar uma prova de existência
daquilo que é mais verdadeiro
O único jeito é acreditar
E acreditar chorando
Esse show acontece
em estado de emergência e de calamidade pública
Trata-se de um show inacabado
porque lhe falta resposta
resposta que espero que alguém no mundo me dê
É um show em technicolor
para ter algum luxo, por Deus
que eu também preciso
Ámen
Para todos nós.

O que será que será
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
Que gritam nos mercados, que com certeza
Está na natureza, será que será
O que não tem certeza, nem nunca terá
O que não tem conserto, nem nunca terá
O que não tem tamanho

O que será que será
Que vive nas idéias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia-a-dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos, será que será
O que não tem decência, nem nunca terá
O que não tem censura, nem nunca terá
O que não faz sentido

O que será que será
Que todos os avisos não vão evitar
Porque todos os risos vão desafiar
Porque todos os sinos irão repicar
Porque todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E o mesmo Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno, vai abençoar
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem juízo.

(Clarice Lispector/ Chico Buarque, À Flor da Terra)