Friday, June 30, 2006

post scriptum tecnicozinho


Retiremos pois a verificação de palavra nos comentários, pelo menos até que eu parta em viagem e não cá esteja para apagar cruelmente anúncios de vital importância para as vossas vidas.

exageros



A leitura era acompanhada de angústia, convinha terminar logo. É que a sempre referida depressão do Holden espreitava-me a cada linha. Sendo a minha (e de muito mais gente, naturalmente) relação com livros visceral, alguns há que me provocam danos mais ou menos permanentes. Experimentei um atrofio inédito lendo A Convidada, de Simone de Beauvoir, uma mini-depressão com Os Demónios de Dostoievsky (sigo ordens médicas e só leio russos - bem, na verdade, quase qualquer autor do leste europeu - muito espaçadamente), e pesadelos horrificantes com Beloved, de Toni Morrison, mas a esta última regressarei em breve e sempre, é uma questão de pele e amor.

Nada de tão sério com The Catcher in the Rye, (em Portugal primeiro traduzido como Uma Agulha no Palheiro e , mais recentemente em reedição renovada, À Espera do Centeio). Num livro com linguagem simples, reconheço a dificuldade em traduzir o título, mas...Uma Agulha no Palheiro??? Tenham juízo, pá. Vêem? Holden pegou-me a intolerância que tanto combato. Falho, na esmagadora maioria das vezes.

Existe somente algo que não irrita Holden na vida, as crianças são as únicas que escapam do seu adjectivo favorito - tudo é "phony" (hoje em dia algo preterida em relação à variante phoney), só crianças lhe arrancam sorrisos, a ele que tem dezasseis anos.

(tira de Annette, em www.vskole.com)

Quando o questionam sobre o que realmente desejaria fazer na vida, apenas uma coisa lhe ocorre - desejava ser o catcher in the rye, num jogo de apanhada num campo de centeio, desejava ser quem os apanhava e impedia de cair no abismo que limita o campo de centeio.

(catcher in the rye, Diana Bryan)

Thursday, June 29, 2006

Ciganeando Clarividências

by Elizabeth Eden

A década em que nasci nunca me parece demasiado longínqua. Atravessava então Manu a ponte quando figura de negro vestida a pára, mira-a nos olhos e pergunta,

Posso ler-lhe a mão, senhora?

Eu não lhe posso pagar.

Há tristeza na resposta, nesta simples resposta que se dá a tantos que nos procuram vender objectos indispensáveis - rosas de papel que nunca morrem, tapetes orientais feitos em Alcochete - originais, minha senhora, tecidos à mão como já não se vê por aí - Timex de cinco euros e meio. E há a sina, também.

Não me pague, não quero. Só lhe quero ler a mão.

Manu estende-a. De mãos pouco sabia, só que se um dia as unhas ficassem roxas a sua morte estaria para breve. Nisso enganou-se, Manu clarividente, posso garanti-lo, pois conhecia-a, vi-lhe unhas púrpura e viveu ainda muitos anos. Mirou também ela nos olhos aquela sua irmã de adivinhação, senhora de artes diversas.A ela, Manu, os presságios chegavam através dos sonhos.

Leonel guardava distância das duas fêmeas. Narradora sou, mas não saberei dizer ao certo que lhe ia no pensamento. Para elas não olhava, disto estou segura, não é de ficar observando os outros. Ter-se-á distraído com algum pássaro, quiçá, bufando impaciente pelo contratempo que o detivera. Ele segue o relógio, tem horas precisas para tudo. Sei, porém, o que pensou às primeiras palavras da cigana, que escrutinava as linhas na palma de Manu.

Há bem pouco atravessou as águas, veio de longe. E deixou tudo atrás de si.

Consigo, apesar de não ter lá estado, vislumbrar o sorriso irónico de Leonel - ora, estamos sobre a ponte de Santa Clara, e atravessamos as águas todos os dias...

Manu, contudo, escutou uma verdade absoluta. Fugira da guerra noutro país, deixando tudo para trás, e ali chegara viajando sobre as águas muitos dias. A curta espreitadela na sua vida registada na pele da mão bastou-lhe para, daí em diante, ter com os ciganos uma relação ímpar. Mais tarde, enquanto outras senhoras faziam avisos terríveis aos netos sobre aquela gente que recusava lei e roubava os meninos maus que não comiam a sopa, Manu parava com a neta pela mão para ter longas conversas com as ciganas que encontrava pela cidade.

Tantos anos depois, Manu, estou bem mais a sul desse rio que atravessavas com o Leonel. Falta já pouco para que deixes o corpo que nos serve de vestido nesta vida, e que por vezes tanto nos pesa.O frio é dilacerante esta manhã, num Alentejo conhecido pelo seu calor. Busco o café, este sim, quente, que me trará para este mundo depois da noite mal dormida. Aproximo-me da janela. O campo está vestido de geada branca. Há somente uma árvore, debaixo dela dois cavalos, cobertos com mantas.

Chegaram os ciganos, Manu, uma vez mais, perpétua caravana. Tapam os seus cavalos de noite, deles dependem para andarilhar mundo afora. O chefe do pequeno clã já preparou a fogueira, acompanham lá de fora o meu ritual e tomam o seu café. Há crianças nuas correndo indiferentes ao frio. Também eu não sentia frio em criança.Aqui estivesses, Manu, pularias para a carroça que em breve partirá, sentar-te-ias ao lado da mulher, e partilharias clarividências.

*texto originalmente publicado em http://herzog.splinder.com, sob o título de Gli Zingari.

Wednesday, June 28, 2006




Fugindo por momentos aos grandes mestres e seus honrados seguidores na arte do acordeão, acordeon, sanfona, concertina, fisarmonica, creio ainda popular em Portugal a figura do acordeonista que anima os bailes populares, anunciado em cartazes de cores berrantes, afixados nas montras de qualquer tasca e mini-mercado que se preze.
No tempo de meus avós (e ainda de meu pai, quando ele em criança passou um tempinho em terras lusas), a rainha do instrumento era a senhora dona Eugénia Lima. No Algarve era particularmente apreciada. Ora não é o acordeão o instrumento mor dos tradicionais corridinhos? Pois é. Em Albufeira o Zé era assíduo dos saraus de Eugénia Lima. Permanecia em êxtase enquanto a então jovem Eugénia manuseava teclas, botões e foles, executando com primor a sua arte. Terminado o sarau e recolhidos os aplausos pela diva, o Zé confidenciava então, a quem estivesse a seu lado:
- Que "habulidadi" no dedo! Que linda mulheri para mim...

Memória traz memória, dela somos feitos. por isso, recordei também

algo escrito já há algum tempo - http://quiromancias.blogspot.com/2005/06/confisso.html#links


(imagem: grupo Danças Ocultas, www.attambur.com)

Tuesday, June 27, 2006

aleixo

Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos, que pode o povo
q'rer um mundo novo a sério.
António Aleixo
Infinitamente sábio este homem que mal sabia escrever, e que se dizia mais feliz que qualquer milionário, pois tinha como secretário um professor de liceu.Muita poesia teve a censura que queimar.

Monday, June 26, 2006

Uma nova amiga fez recordar...


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Danças Ocultas - Escalada

Escutado pela primeira vez no Festival músicas do Mundo. Chorei baba e ranho o tempo todo, mas foi de pura felicidade

Neste Mundial...

sinto falta de ouvir o lobitanga Jorge Perestrelo:

pedindo aos jogadores que comessem muita moamba para aguentar a corrida,
antecipando a ripa na rapaqueca
perguntando ao jogador que falha qu'é qué isso ó meu?!
aconselhando os hipertensos: ponha o comprimido debaixo da língua, aguenta coração!
exclamando feliz: é disto que o meu povo gosta!
opinando: até eu com a minha barriguinha fazia melhor...
apelando: Nha Nossa Senhora!
setenciando guarda-redes: frango dos antigos, com penas e direito a cacarejo,

e tantas, tantas outras coisas...


Para quem quiser recordar:

http://www.tsf.pt/online/common/include/streaming_audio.asp?audio=/2005/05/noticias/07/memoria.asx

Friday, June 23, 2006

Trocadas as voltas ao dia, a escrita fica para depois

Os especialistas são unânimes: é você que deve ser o líder da matilha, e não o cão.



Hum, pela reacção, o Bengo não se fia na opinião de qualquer um.



- Queres fazer o favor de olhar para mim quando falo contigo?

- Errr, o que estavas a dizer, mesmo?

- Oh pá, deixa-te de conversas!

- Pronto, está bem...


- Ele é tão querido quando brinca... eh pá, mas aquilo não é o meu ursinho?!


- Oh minha, aqui o que é meu, é meu, e o que é vosso é meu. Que parte não compreendes?

Thursday, June 22, 2006

revisitação

(O Amor nos Tempos da Cólera, do Gabo, pues!)


Com lista tão ambiciosa de livros para ler, de vez em quando ofereço-me uma releitura especial, e não me sinto culpada do tempo passado visitando páginas já conhecidas. Tem sido estupendo ler com olhos todos novos alguns livros da minha adolescência. Como este. Há duas noites atrás voltei a despedir-me de Fermina Daza e Florentino Ariza, e desconfio que ainda hoje eles continuam a subir e descer o rio, ela tomando longos banhos para afugentar o cheiro de velhice de que se queixava, ele buscando-a com especial ardor nas manhãs em que o corpo faz a vontade ao peito.

Wednesday, June 21, 2006

retorcido II

(mapa de Pierre Desceliers, 1550)

As riquezas refinadas (refinadas como a farinha e o açúcar, que no processo perdem as cores de terra dourada e sol) concentram-se maioritariamente no espaço setentrional. Ainda assim os meridionais riem mais, tendo a vantagem de o fazerem frequentemente de si próprios. No espaço meridional não há linhas contínuas de tragédia (e sabe Deus que é lá que a tragédia encontra o seu verdadeiro significado). Há sempre portas abertas e lançam-se pontes de corda frágil e tábuas de madeira, pelo menos para tragicomédias.
Na dimensão meridional há um povo de gente baixa que não conhece fronteiras, não pertence a país algum, nenhum deus lhes segredou que as linhas, bandeiras e cercas tinham qualquer significado, um povo que não indaga sobre o futuro. Se os aprisionarem, morrem dentro de pouco tempo, só o agora é.
No mesmo hemisfério, contaram-me um dia, mas separados por um Atlântico majestoso, existia um povo rodeado de verde, cuja língua não possuía termo para o mal. Não se tratava de ausência de valores morais, simplesmente a vida não lhes tinha feito notar a necessidade de tal palavra. Creio que neles estavam encarnados seres que em seguida à viagem terrena passaram a anjos diáfanos. Para mim, isso é civilização.




retorcido I

Como são feios os gráficos.

Tuesday, June 20, 2006

faça por ele como se fosse por mim


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Gal Costa - Antonico


Quando era pequenina meu pai tocava esta canção e tentava fazer-me acreditar que eu sabia cantar. Era difícil, mas ele era muito paciente nessa tarefa, ao contrário do que acontecia quando me explicava os números e a minha mente vaguevava em sons e palavras. Havia um debate contínuo: segundo o especialista, a minha voz era feita para agudos aventureiros. O pior é que eu queria era mesmo cantar com voz grave e profunda. Acho que no processo as minhas cordas vocais tomaram vergonha na cara. Eu, entretanto, ajudei-as a evitar possíveis danos auditivos passando a fumegar.

Friday, June 16, 2006

o tempo fora de tempo


um olhar
Originally uploaded by Kanuthya.


Tenho uma relação complicada com a linha temporal ordenada. Assim sendo, poderão encontrar neste espaço posts sobre o Natal escritos no calor de Agosto, reflexões redentoras pascoais publicadas em Dezembro, hino às arvores no dia 21 de Setembro, e homenagens a escrevinhadores que admiro com regularidade, mas certamente longínquas dos dias em que os escribas nasceram, partiram deste lado ou receberam uma qualquer distinção, vivos ou a título póstumo. As datas escapam-me, incluindo a do meu próprio aniversário. Só quem realmente me conhece pode acreditar piamente na afirmação anterior.
Há dias o mundo consumista lembrou-me que se aproxima (ou já passou?) o Dia do Pai. Somos tão atarefados e metidos connosco mesmos que instituimos dias para qualquer coisa, para tudo e mais alguma coisa, dias para não nos esquecermos de ser.
Na última data instituída liguei-te com atraso, mãe. Mas tu estás em cada gesto meu, no fluir de tinta que derramo em papel, no tempero que adiciono quando cozinho com amor, e no reflexo dos teus olhos enormes que o espelho me devolve todas as manhãs.

Monday, June 12, 2006

Do Hedonismo


Deep Blue Sea
Originally uploaded by Kanuthya.

adormecer ao som das ondas

recolher conchas e búzios que o mar já deixou na areia

traçar fios coloridos em telas finas de pano

acariciar cachorro atrás da orelha

mesclar sabores em panelas grandes e servi-los a pessoas que amo

pão quente de forno de lenha com manteiga

deixar caneta de aparo fluir livremente no papel

cheirar terra molhada após enchurrada

escutar cuíca e berimbau

deixar derreter na boca leite condensado (ou leite moça. como se diz na minha terra) cozido

cheirar coentros

nadar no mar, sem roupa ainda melhor

Tuesday, June 06, 2006

Fora de Tempo Roubado de Um Qualquer Janeiro - Manias (categoria sem numeração, seria perda de tempo)




Pegado à pele está, como outros vícios, o de escrever a lápis. Este parece-me acentuado por vulnerabilidade ainda maior, este claro cinza tão fácil de apagar. Como sempre, o começar foi-se adiando, diluiram-se as tontas resoluções de ano inaugurado. No meu caso, esta tinha sido a única resolução imaginada. Deve ser grave, falhar na única coisa imaginada. Quando pensava em começar a traçar os riscos carvoeiros, somava-se à anterior uma resoluçãozinha mais feliz. Não os desabafos tristes, que se desvanecem na manhã do corpo repousado. Mas triste de verdade terá sido supor que podia decidir ordenar palavras fugindo de assuntos, impondo barreiras, cortando liberdades. Criaturinhas que habitais dentro de mim, se quiserdes pois falar, que vos flua liberdade no frágil bico, quando o corpo rasa o razoável e a mente extenua nas noites sem descanso, a que já não estava habituada, de sonhos tão vívidos e sobressaltantes que o momento de dormir se torna simultaneamente desejado e temido. Aparentemente domina o medo. Faz-me falta escutar a voz que me lembrava da proximidade de Deus. Havia então um calor diáfano, um conforto maior. Ter-me-ei vendido a uma companhia aparente? Odeio a própria questão. Mas é bom colocar questões que nos atormentam e que desprezamos.
(imagem: pencilpages.com)

Friday, June 02, 2006

Incentivo

"Redacção

Carnaval da vitória é o porco mais bonito do mundo. Meu pai que lhe trouxe no sétimo andar onde a comissão de moradores é reaccionária porque não quer porcos no prédio e o camarada Faustino tem kandonga de dendém e faz kaporroto a cem kwanzas cada búlgaro. Primeiro o nome dele era só carnaval. Depois que a gente ganhou a vitória contra o inimigo o nome ficou carnaval da vitória. O inimigo é um fiscal fantoche ladrão de porcos que lhe denunciámos no prédio onde ele ficou na vergonha. Carnaval da vitória é o porco mais bom do mundo porque quando veio na nossa escola a camarada professora deu borla.
O meu pai é um reaccionário porque não gosta de peixe frito do povo e ralha com a minha mãe. Ele é que é um burguês pequeno mas diz que carnaval da vitória é um burguês. Por isso lhe quer matar só por causa de comer a carne. Carnaval da vitória é revolucionário porque quando meu pai bateu em mim e no meu irmão Zeca ele lhe quis morder. Nós não vamos deixar matar carnaval da vitória porque a luta continua e o responsável da comissão de moradores não sabe as palavras de ordem que os pioneiros é que lhe ensinam. E a camarada professora é muito boa porque deixa fazer redacções que a gente quer e até trouxe na escola o primo dela Filipe que veio tocar viola dentro da nossa sala.

Ruca Diogo"

in Quem Me Dera Ser Onda, de Manuel Rui

kandonga - negócio clandestino
dendém - fruto de uma espécie de palmeira, do qual se extrai o óleo de dendém, ou óleo de palma, muito usado em culinária
kaporroto - bebida feita a partir da destilação de fermentado de açúcar
búlgaro - frasco de compota importada da Bulgária, que se utiliza depois como copo