Thursday, September 28, 2006

B.r.u.m.a.

(Lost in the Mist in someonespecial.com)

Barca rumorosa ululante mascarada alva. Bru-ma. Bruuu, ma. Gosto dos movimentos do aparelho fonador que permitem soprar estes sons. Agora que penso nisso, terá que ver com os dois sons iniciais, pois também gosto de bramido e Braga, e um pouco menos de bróculos.

Sonhei-te uma destas noites. Evito as noites o quanto posso, faço-o voltando a práticas antigas, tentando gingar o sono, voltear pé ante pé, esperando que ele não me leve para as viagens pouco repousantes. Sonhei-te e eras tu mas com o rosto que tinhas, o cabelo que tinhas, o vestido de fazenda que te picava que tinhas, buscando o conforto solitário da gola branca, que impedia que passasses o tempo coçando furiosamente o pescoço, os dentes pequenos que tinhas, o riso e o choro que tinhas, os sapatos de verniz que te obrigavam a calçar no Natal. Foi o único modo de te visitar nestes tempos. O que tens está na bruma, estendo uma mão, as duas, os braços em cruz para te apanhar e não te alcanço. Vivo o luto de um corpo vivo. Aprendo a vivê-lo. O resto vai caindo sobre terra, e começa a acreditar em magas que esconjuram sombras e, para meu desgosto, visto gostar tanto da palavra, brumas, sobre os outros. Então visito-te novamente no sono, para poder comunicar directamente com o que em ti permanece teu e meu e nosso, e digo-te que vou criar mil e uma poções que limpem os esconjuros, duvidando no mesmo momento dessa promessa, tentando não verter lágrimas, pois é a tua alma que me vê no sono, e ela ainda não sabe o que te aconteceu, não a quero sobressaltar. Durante o teu sono, vou também sussurrar-te que aqui só escrevo ficção. E, quiçá também eu, no sono, poderei acreditar, só por um pouquinho, que a bruma que te envolve se vai dissipar.


Tuesday, September 26, 2006

De Profundis, Valsa Lenta

(José Cardoso Pires)

Ah, o título... Que título este.

Que somos quando não sabemos quem somos? Que existência de nós resta quando a mente se perde na tal bruma que já defrontei de tão perto que lhe pude sentir a humidade na ponta dos dedos? Eu via-a, à bruma, noutros olhos. O autor viu-a no seu reflexo do espelho. Um momento precioso deste pequeno grande livro é o prefácio de João Lobo Antunes, que segue vendo seres humanos além de linhas grafadas em electroencefalogramas.


À Margem de Casanova

( Miklós Szentkuthy)

Li em português, apesar da versão ter sido traduzida directamente da representada acima, francófona. Na verdade não sei se o original terá sido escrito em húngaro ou alemão. Suponho que ser tradutor de húngaro em Portugal não compense.
Erros cruciais:
não ter lido as memórias de Casanova antes de embarcar nesta viagem;
não não ter lido tudo o que pude dos clássicos antigos;
tê-lo lido neste momento.

Friday, September 22, 2006

Celebrar o Futuro - Mia Couto IV

(Bartolomeu Dias dobrando o Cabo da Boa Esperança)

"O mar foi ontem o que o idioma pode vir a ser hoje. falta vencer alguns Adamastores de percurso. Naveguemos nestas águas comuns, desdramatizando e descolonizando as Descobertas, afastando maniqueísmos. Outros Descobrimentos começam quando os moçambicanos adoptam outra posição que não a de pedir contas ou explicações pelo passado. Outras descobertas começam quando os portugueses acreditam que ainda há tudo a descobrir nesse mundo que outrora eles acreditaram revelar ao Mundo. A viagem está ainda por começar. Haverá mais razões para celebrar o futuro."

Thursday, September 21, 2006

Celebrar o Futuro - Mia Couto - III

(Enviados do Régulo Gungunhana, in Gravuras Antigas de Moçambique)

"Um encontro de culturas exigia que entre os interlocutores se anulasse qualquer relação de poder, qualquer laço de subordinação. A revelação e entrecruzamento de valores e tradições requeria uma relação entre seres soberanos. A dimensão do colonialismo não foi, contudo, tão omnipresente, perfeita e acabada como se pretende fazer crer. Uma dominação tão absoluta exigia uma outra capacidade da potência colonizadora. O edifício estava fracturado, o tecido sempre esteve descosido. Encontros de culturas aconteceram em níveis e momentos particulares, em ocasiões excepcionais em que os homens foram capazes de se sobrepor às circunstâncias sociais. Nesses momentos, sim, houve intercâmbio, namoro e hibridação de culturas.

Desse encontro ficou o sabor doce da mestiçagem, uma vocação de aceitar o outro e conviver com a diferença. Ficou uma língua comum que deve ser saudada exactamente pela forma como pode deixar de ser "portuguesa". A adopção de uma língua comum, longe de uniformizar, é um meio de afirmar a nossa individualidade. Paradoxal nos parece: a língua do outro fazendo-nos soberanos e únicos. Teríamos, ao fim e ao cabo, outros motivos para celebrar os chamados Descobrimentos. Experimentemos o seguinte pensamento: quando os navegantes portugueses chegaram não havia "moçambicanos". O processo posterior de colonização foi quem unificou os povos deste território, lançando as bases da nação. Vasco da Gama foi, ironicamente, o prenunciador desse longo processo da criação da moçambicanidade."


Wednesday, September 20, 2006

Celebrar o Futuro - Mia Couto - II


"Este acerto de verdades está apenas esboçado. À mistificação feita pelo regime colonial seguiram-se outras simplificações redutoras, de nossa inteira responsabilidade. Não sei que mestiçagem particular hoje podemos comemorar. Os que procuram identidades culturais "puras" não são mais que caçadores de miragens. Não há hoje cultura que não seja mestiça. A mestiçagem cultural em Moçambique começou bem antes da chegada dos portugueses. Começou mesmo antes da chegada dos árabes e dos asiáticos. Os grandes movimentos migratórios do continente já haviam mesclado diferentes culturas africanas. Será necessário retirar véus que, ao nos afastarem da nossa própria identidade, nos apartavam uns dos outros. Tarde ou cedo, acabaremos por redescobrir em nós aquilo que outrora expulsámos de dentro de nós.
Trata-se, afinal, de resgatar uma relação que já existiu. No primeiro período das viagens terá havido uma possibilidade sistemática de encontro de culturas. As relações estabeleciam-se, então, sem marca de domínio, e os povos se expunham, em ingénua e total entrega. A descoberta mútua que marcou os primeiros tempos foi depois substituída pela dominação. A conquista matou a descoberta. O espírito de fascínio pela novidade foi rapidamente cooptado pelo desejo do lucro, pela expropriação de riquezas. o soldado tomou o lugar do investigador. O comerciante substituiu o cronista. O diplomata foi destronado pelo administrador. Iniciava-se uma longa era de distanciamentos entre os povos, de criação de sentimentos de inferioridade, de culpa e de vergonha."


Curiosa uma analogia entre o que escreve Mia sobre os povos, com o encontro amoroso que degenera em desencontro, não crêem?

Monday, September 18, 2006

Celebrar o Futuro - Mia Couto - I


Encontrei o texto que buscava já há algum tempo. A folha conserva-se em bom estado e recomenda-se. Não quero celebrar descobrimentos. Há dias em que talvez até o pudesse fazer, mas agora não. É que em vez de encontro cultural, houve muitas vezes encontrão, como disse o Mia. A tal da folha tem anotações minhas, feitas no início da década de noventa, século passado, aka. Tem pedaços de transcrição fonética no alfabeto de Paiva Boléo, que tinhamos de aprender a par do internacional. A professora tinha boas ideias, levando textos polémicos, interessantes, comentando e chacoteando, enquanto talvez alguns alunos mais acinzentados achassem que era hora de linguística, e que esta não devia meter ao barulho história e antropologia.
As minhas palavras andam refugiadas em cadernos; voltarão, mas por ora partilho convosco as do Mia (que, quanto a mim, além de reflectirem em muito a realidade, reflectem uma realidade peculiar ao seu país de origem, onde a colonização terá assumido matizes muito próprias, infelizmente pela negativa, pela proximidade com a África do Sul), desta vez numa crónica publicada no Expresso, em Março de 92.

"A celebração dos Descobrimentos valerá a pena quando os povos de diferentes continentes se juntarem numa festa comum. Até lá resta o tempo das mistificações, dos preconceitos recíprocos, das cicatrizes mal curadas.

Celebrar nos Descobrimentos um "Encontro de civilizações" corresponde a uma vontade de recuperar tudo o que de positivo houve no relacionamento entre africanos, asiáticos, americanos e portugueses. Mas esse desejo traduz mais um caminho a começar que uma realidade do passado. Se não entendermos quanto falta realizar nesse processo comum de desnudar a realidade, o celebrado "Encontro cultural" pode ser uma outra, mais simpática, falsificação da História.

Durante séculos, a revelação e partilha de valores culturais aconteceu de forma fortuita e superficial, contra a corrente da História. No domínio do intercâmbio cultural, os Descobrimentos acabaram por ser convertidos na sua própria negação. Os Descobrimentos tornaram-se nos Encobrimentos. O encontro virou encontrão.

Viajando pelo litoral de Moçambique ainda hoje recolho sobrevivências dos mitos que, no tempo das caravelas, habitavam o imaginário das populações costeiras. Acreditava-se que os portugueses praticavam a antropofagia e que os navegantes carregavam nos seus barcos homens destinados a satisfazer a gastronomia lusitana. Os navegantes portugueses acreditavam igualmente na existência de práticas de antropofagia entre os africanos. A aproximação entre os dois imaginários se fazia, afinal, pelo desconhecimento mútuo. Esse distanciamento ainda hoje prevalece.

O que pode hoje ser celebrado é o podermos inscrever em programas nacionais a progressiva superação de preconceitos que deformaram a troca de valores culturais. Os descobrimentos portugueses podem prosseguir no próprio território português. Os Descobrimentos moçambicanos podem ser continuados dentro da jovem nação africana. Os portugueses podem fazer regressar para si um olhar que revele as Áfricas que existem em portugal e assumir a sua mestiçagem racial, cultural e religiosa. A descoberta de um Portugal plural, católico e muçulmano, europeu e africano, pode ser, funcionar, como exemplo numa Europa que dificilmente aceita a sua própria diversidade. Moçambique descobrir-se-á na sua totalidade se se aceitar como nação mestiça que integra a herança portuguesa não apenas como fatalidade da história mas como parte da sua actual dinâmica.

Thursday, September 14, 2006

sempre dois lados da mesma viagem



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Milton Nascimento - Encontros e Despedidas

Ia escrever que este espaço sobrevive às golfadas, ou colocar um espanador como ilustração. Dizem que grande parte do pó das casas é constituído pelas células mortas da pele dos seus habitantes; pairam no ar, até se depositarem sobre as superfícies. Mas as casas desabitadas, e mesmo cerradas ao jeito de fortes cobertos por véus de persiana ultra resistente apresentam na mesma o tal do pó. Pergunto-me agora qual o sentido do que escrevo. Rigorosamente nenhum que queira explorar. Não é preciso querer, mal termino de digitar a última letra da frase anterior, e sei de onde vem a questão do pó. Vejo muito desmoronar-se ao meu redor. Sei que não faço parte das ruínas, apesar de ficar coberta do pó que as demolições provocam. Mas tudo é construção e reconstrução, escreve ela, quase quase apiedando-se do patético e enfadonho da afirmação basicazinha. Há a canção e o laranja do sol quando ele se deita. Posso espreitá-lo assim. E isso é belo. E isso é muito.

Tuesday, September 12, 2006

Mar de Setembro

Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
o mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves, só
alma e brancura.
felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto,
puríssimo, doirado.
Eugénio de Andrade

Thursday, September 07, 2006

Meio regresso com palavras roubadas - Carta de Neruda a Albertina

"A primeira coisa que tenho de fazer, para escrever-te, é ver se a tinta corre neste mau papel. Agora, já sei que corre, e sempre te escrevo. Porquê tão pequena a tua carta? Bom. Esta noite vou enviar-te uma mensagem telepática. Vou dizer-te: "Amo-te, Arabela". Hás-de ouvi-la às três da manhã, quando estiveres a dormir.
Na outra noite, ontem, houve um incêndio aqui, defronte da minha casa. Quase que nos queimávamos. Chamas, altas e belas, água, lágrimas da minha mãe. Eu cá diverti-me imenso. Depois choveu.
Tu estás bem no retrato, mas és mais bonita. hei-de, um dia, fazer-te um; pintarei a tua boina da cor que tem, a tua boca da cor que tem; e os teus olhos que são da cor do chá. Hei-de pintar-te sentada à janela, e, quando virem o quadro, hão-de todos dizer: "Quem é esta menina tão triste?"
Não saio, sequer, de casa. Chove, quase sempre. Passo o tempo como que adormecido. Enterrado num velho cadeirão, como a minha avó, ao lado de um braseiro, pensando que no inferno deve chover como nesta terra bendita.
Surpreendo-me às vezes a pensar em ti - e noutras coisas inúteis - mas volto logo a mim e digo com os meus botões: Ela saiu-me uma boa rês.
Esta tinta encarnada faz-te doer os olhos, Pequena? Não é verdade?

Pablo

24 de Julho"

Friday, September 01, 2006

Pré-funeral de um portátil

Eu tenho tentado. De quando em quando o computador desliga. Isto só para dizer que de facto vale a pena seguir as minhas vontades de escriba à maneira antiga e registar tudo no perecível papel, que afinal sempre me dura mais do que os textos aqui escritos e perdidos...