Tuesday, September 20, 2011

de onde somos

Primeiro, busco saber que fluído corre até à pena. Gostava de me certificar não se tratar de fel. É feio. Faz mal. É fétido.
Ninguém deve criticar o seu próximo por este ter e valorizar uma vida mais tranquila do que a que conheceu, talvez, no passado. É humano. Buscamos conforto, um tecto seguro que não nos caía a cada instante em cima e deixe entrar vento gélido ou traga a imúndice da rua. Limpamos o calçado, ao passar a soleira da porta, deixando lá fora os lixos do mundo. Limpamos também os olhos, os ouvidos, queremos os momentos de paz que merecemos.
Muitos angolanos e naturais de Angola residem em Portugal. Não, não é a mesma coisa, necessariamente. Há naturais de Angola que sempre se consideraram portugueses. Não é crime. Nem errado. Simplesmente é. Há também os que se consideram ambas as coisas, angolanos e portugueses. Natural. Vivências marcantes e longas, afectos, raízes em ambos os locais. Na modernidade torna-se imperioso melhor compreender as múltiplas identidades, que nos devem enriquecer, ao invés de trazerem conflito interior, dúvida e dever de escolhas singulares. A muitos a vida levou a multiplicidades. Contudo, há, de um modo muito geral, um carinho e especial orgulho, nestas pessoas, quando referem a sua naturalidade. Muitos continuam a afirmar que esta última se sobrepõe a questões de nacionalidade, sendo fulcral nas suas identidades. São, sempre foram, sempre se sentiram, continuam a sentir-se angolanos.
Reunem-se, ainda, tantos anos depois, em funjis de domingo. Encontram-se anualmente, revendo colegas e amigos de escola, para confraternizar. E recordar. De memórias somos feitos.
Repetem, com orgulho e, não raras vezes, lágrimas, o seu amor pela terra mãe. E pelas pessoas, falam muito das pessoas. As pessoas continuam lá. Angola não passou a ser desabitada desde que saíram, em convulsão, de vossas terras natais ou de longa permanência e com a qual dizem manter profundos laços de afecto.
Hoje podem recordar ainda melhor. Já não dependem de encontros e troca de fotografias, de visionamento de filmes em salas escuras improvisadas, em que recordam as visitas à Senhora do Monte, os piqueniques e tardes de praia na ilha ou no Mussulo, as idas ao Miramar, os passeios na Restinga. Podem, ainda, quando desejam, seguir a actualidade desses países. E assim o faz grande parte. A partir de suas casas, acedem a sites, a redes sociais, e confraternizam agora segundo as excelentes possibilidades que nossa era permite. Aqui. Neste canto do mundo.
Levanto-me e vou buscar um copo de água. Posso fazê-lo tranquilamente, de tal modo que o gesto não me faz reflectir. É somente um entre muitos gestos do meu dia-a-dia. Tomo a minha água sem receio de contrair uma doença, de forma geral. Caso a contraia, raridade, posso deslocar-me até ao posto de saúde mais próximo. Posso reclamar do tempo de espera, do atendimento. Mas ele chega. Se não chegar, posso reclamar. Posso circular livremente. Sem que a polícia me maltrate, sem que me peça suborno, sem que ponha e disponha da minha vida, como se esta se tratasse de uma folha de papel sujo, a amarrotar e jogar fora. Impunemente. Posso tentar afzer valer os meus direitos, conforme tento cumprir os meus deveres. Muita coisa pode não funcionar pelo melhor, mas a minha voz é escutada. Sem que tal signifique poder ser presa sem qualquer crime ter cometido. Resido num país em que um governo não toma para si a constituição, mudando-a a seu bel prazer. A vida está difícil, a crise grassa. Mas aqueles direitos básicos ainda ali estão. E para quem acredite e se preocupe, justamente, que estes sejam diminuídos a cada dia, existirá, quiçá, na vossa consciência, pelo menos a noção de que as realidades não são equiparáveis nestes pontos referidos.
E toma a sua água. Potável. Senta-se novamente, e continua seguindo os seus grupos favoritos, os seus fóruns, que lhe trazem notícias e recordações lindas dessa tal terra. Escuta a sua música, a música com que cresceu, ao som da qual tanto dançou e foi feliz ou infeliz.
Já saiu para a rua, no país que o acolhe há tantos anos e que também pode chamar de seu, para defender seus direitos. Não o faz pela terra que ficou lá atrás, mas que diz continuar a amar do mesmo modo. Tem todo, todo o direito de assim fazer. É livre. Quer concentrar-se no presente, tem já suas pesadas preocupações (aqui não reside ironia), quer paz e sossego. E isso também não é crime. Mas pense antes de dizer, na próxima vez, se aquela continua a ser a sua terra. E tome a sua água.