Wednesday, June 29, 2005

Ora bem, sei que é a crise e tal, mas a vossa terra é tão linda

Para mim que sou estrangeira sendo nativa também no sentir amor pela terra, este lugar começa agora pelo Côa. Podia ser por Miranda, onde pararia e me banquetaria com uma belíssima posta que se desfaz na boca como manteiga (para os que abominam manteiga, duas coisinhas: 1. imaginem o sabor do que mais gostam acariciando papilas, desfazendo-se na boca - se o vosso sabor preferido é o dos torresmos a coisa complica-se; 2. como é possível não gostarem de manteiga?).
Poderia ser uma entrada mais deliciosamente kitsch por Badajoz carregada de sacos de caramelos, sendo depois brindada com Elvas, na sua beleza de cal que me vai antecipando outros Alentejos. Mas foi pelo Côa, dá jeito depois do percurso com que nos brindamos por um dos locais eleitos no planeta conhecido, o País Basco.
É tão bom ser-se acolhida por braços de gente ou de terra.

P.S. Qualquer incoerência maior do que a habitual deve-se ao sono (prefiro pensar que é ele o responsável...)

Friday, June 24, 2005

Post Scriptum manguito pour vous

Ah, faltou dizer que eles adorariam escutar essa palavra, manguito, que depois geralmente se faz, em vez de se dizer, mas soar-lhes-ia a espanhol, o que fica sempre bem, que aqui se fazem muitas corridas de toiros e se anuncia a letras gordas e exóticas paella, nem sempre bem escrito, mas com boa intenção.

Manguito pour vous

Por esta banda há muito quem fuja da aguinha, digo eu, excepto da de perfume. Em qualquer tasca de Portugal, por mais moscas que esvoacem, por mais sujo que o vidro do expositor de pastéis de bacalhau e rissóis esteja, pega-se nos ditos cujos com uma tenaz, essa fabulosa invenção, e atrevo-me a dizer que não é muito bem visto pegar directamente em comida e dinheiro, de seguida, ou em simultâneo, que Deus Nosso Senhor nos brindou, na maior parte dos casos, com duas mãos. Aqui uma prestimosa senhora na padaria não perde tempo munindo-se de luva de plástico, já estou como o outro, que não acreditava em fantasmas nem em germes, porque nunca vira nenhum dos dois. De seguida vêm os troquinhos, pois claro. Mas isso viria eu a constatar ser a mais inocente das badalhoquices. Quando a senhora da padaria se corta e sangra copiosamente, quiçá após trinchar um pão de forma, que as coisas querem-se já prontas e práticas, continua servindo o pãozinho aos clientes, que não se mostram chocados. A pessoa que me acompanhava ria à gargalhada perante a minha boca aberta. Felizmente não entraram moscas.
Um gajo passa perto da estação de comboios, que como sabemos, costuma ser um local asseado, e vai degustando uma tarte de amêndoa, sem papelinho por baixo. Eis quando senão repara que tem o atacador solto, e ei-lo fresco da silva, pousando a tarte num beiral de janela coberto de caca de pombo, agachando-se e compondo a toilette, não vá ele cair no meio da sujidade da rua. Na minha estupidez penso, Olha que porco, não podia ter colocado a tarte no caixote do lixo ali ao lado? Está calada que fazes bem melhor, qual deitar fora qual quê, depois do sapato atadinho, a tarte segue goela abaixo, acompanhada de nutrientes extra que não vinham na receita original.
Isto já soa a saiolice da minha parte, bem sei, mas não sou nova em andanças, e devo dizer que aqui encontrei o conceito de higiene mais original de sempre.
Nesta residência é estrictamente proibido fazer barbecues, ah como abomino o estrangeirismo flatulento, ainda que cada casa esteja bem isolada em relação à seguinte, e não há por cá os ventos de Sines, colocar antenas, parar o carro à porta para descarregar meia tonelada de coisas, nem que seja por alguns minutos, e uma série de coisas que ainda não pude ler por estarem em letra muito reduzida, à entrada.
Ando com ganas de fazer uma sardinhada com pimentos assados.

Wednesday, June 22, 2005

Camelia Fimbriata Copihue


Camelia-Fimbriata-Copihue
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Não prefere que a tomem por dama, e ali permanece, irradiando luz que quase fere olhar, entre folhagem verde, fazendo-se cara a quem a desejaria colocar num decote ou plantá-la em longa cabeleira.

In viaggio IV

O avô Amado, de nome estampado nos documentos que nos exigem nas burocracias da vida, e de coração, trocou-se todo nos dias de registo e baptizados da sua prole, de forma que o nosso devido apelido familar se perderá. Há quem na família se tenha mexido para recuperar o sobrenome, temerosos que estavam pelo arrancar abrupto de palavra tão auspiciosa. Se as palavras têm tal poder e força, não se admite que lhes tivessem tirado logo essa, parece mau agoiro.

O Amado fez-me um carrinho de madeira e verga, onde eu inchada colocava um chorão que havia sido da minha mãe. Não pude dar outro nome ao boneco já algo desbotado dos sóis tropicais, teve de ser Bochechas, tal era a semelhança que apresentava com aquele senhor que eu via na televisão a preto e branco.

É uma sorte danada ter gente habilidosa e criativa a rodear-nos nos anos primeiros, os brinquedos à mão feitos esbateram as coisas más, que apagá-las não se poderia nem deveria fazer. Moinhos de vento para trazer na mão, correndo por um terraço encantado e que eu via como gigantesco, mobílias em miniatura, presépios únicos, os mais belos que vi, tudo isso fazias, Amado. Deste-me sonhos para encher uma data de livros, fora os segredos que te povoam e que não deixarás registados, por serem só teus.

Monday, June 20, 2005

O rapaz que olhava as estrelas

John Russell

Na passagem do milénio, que não deixa de ser criado por nós (será mais artificial e fugidio da natureza por isso?), um rapaz refugia-se nas montanhas ermas onde o gelo derrete, levando consigo troncos vergados e caídos das tempestades, arrasta segredos pelas encostas abaixo, entregando ao rio turbulento seres perecidos nas durezas do Inverno, carcaças não são, que permanecem conservadas meses a fio pelo gelo, para virem a encontrar nas águas que correm o banho final que revela o que deles resta.

Destrói documentos, rasga cartões de crédito, perde meios de comunicação, e toma para si um novo nome. O rapaz deixa um caderno, e pronto, está vista a minha predilecção por ele, rapazes e cadernos e está tudo perdido. E deixa um telescópio ao seu mano, para que o continue a ver entre as estrelas. Na escuridão que precede a aurora boreal os seus passos traem-no, ele que julgara encontrar o seu real trilho, e fere-se de morte, perdendo os seus fluidos vitais e o sangue que pulsa e impulsiona a sua máquina. As dores corroem-lhe o físico, logo agora que a alma finalmente sorria, e arrasta-se entre folhas secas, pedras que o arranham, descidas vertiginosas que lhe podem terminar a dor a qualquer momento, basta que se deixe cair. Arrasta-se até à beira da encosta para ver em lugar privilegiado da plateia o presente que Deus coloca no hemisfério norte, profusão de cores bailando, o espectáculo que escolhe para deixar os olhos corpóreos e perecíveis.

Vão buscá-lo e arrastam-no numa maca improvisada de galhos e lona, até às conveniências de salvamento. Aceita ajuda, permanece num moderno hospital, longe das matas, cicatrizam-se feridas e ganha-se de novo mobilidade, pais rejubilam por crerem ter de volta um filho que julgam conhecer. Em manhã limpa, assim que pode caminhar, deixa o caderno sobre o leito hospitalar e reassume o nome e vida que o escolheu. E ela estava lá, à sua espera.

Sunday, June 19, 2005

Il palo che voleva avere braccia


David Fokos- West Chop Poles
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Gli altri inviano, chissà, barche di carta con poesie d'amore o di solitudine, o della vita

Che lui non può prendere

Preso che è nella sabbia


Friday, June 17, 2005

Desejo darwinista

A nossa mente podia vir apetrechada de um bloquinho integrado de lembranças, das que surgem nos momentos não acordados, como uma base de dados aberta a consultas posteriores, antes de passarem pelo guardião, o Super Ego que as empurra para as zonas escuras.

Crocus Serotinus Clusii

Disseram-me que és flor solitária no Outono, calculo que sejas brava. Um repasto de arroz forneado contigo deve ser ainda mais especial por isso.

Cytisus Striatus

Não te recordo assim, erguida e só, mas numa profusão de companheiras. Gostava de te colher com a minha mãe, especialista em cuidados botânicos, entre outros, o maior de todos sendo o amar. Tens culpas no ainda hoje ter fraco por flores amarelas.

Thursday, June 16, 2005

Mediocritas

Há uma voz maldosa que desassossega o escriba, quando este se debruça no caderno e indaga que faltará ali, porque lhe soa a tão pouco, a medíocre. A voz insinua-se mais fortemente até se transmutar em pontadas, é mau, é mau porque deixa de fora ou somente aflora o amor, esse é o tema que deve reinar, apoderar-se sempre de qualquer escrito. O escriba sacode a voz, há coisas que ainda doem demasiado para passarem para papel, ainda que num paradoxo precisem de o ser para doerem talvez menos.

Digitalis Purpurea


digitalis-purpurea
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Protegerias dedos esguios armada em dedal, na tua textura de cor suave?

Wednesday, June 15, 2005

...

Tudo soa a pouco e a vazio, porque essas coisas também têm som, enquanto não escrever sobre ti, Mãe.

Tuesday, June 14, 2005

E uma Geninha cantou isto. E é tão bonito.

Dás-me os olhos para ver
o que está na minha mão
ela está entre o que eu sei
e antes do ainda não
dás-me a boca para saber

o que está na minha pele
ela está dentro de mim
e sabe a terra de mel
dás-me o corpo pra sentir

o que está no meu olhar
ele está depois de mim
e antes de aí chegar
dou-te os olhos para ver

o que ainda não chegou
que aqui perto eu penso em nós
ao lado do que passou

Terra de Mel

Confissão


duo accordéon mélancolique
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Há paixões assim, que se distribuem por vários corpos e sonoridades, como se um só não bastasse para abarcar tanta coisa.

É de baba e ranho, ainda que soe mal aqui dizê-lo, mas se é verdade, que fazer? Ainda em tempos que chorar era difícil, com o acordeon foi sempre limpo e fez escorrer sem esforço gotas de sal. Ele perdoa-me o fraco que tenho por violinos, na tendência melodramática que impõem ao meu corpo, assim ao jeito kitsch de um Almodovar. Mas o acordeon, senhores, dito mesmo assim ignorando o portuguesismo, esse vem como nadar nua após a zona de rebentação no mar ou como o mais longo orgasmo. E é tolerante essa paixão, que não costuma sê-lo. Vai desde gargalhadas com as estórias de um algarvio que, ouvindo a senhora dona Eugénia Lima se derretia, balbuciando entre baba que lhe escorria, Que "habulidade" do dedo, que linda mulher para mim; é de um Piazzolla de olhos fechados rasgando as nossas entranhas com tanta beleza, é da pureza concertada por dedos vários e lágrimas finas escorrendo ouvindo Danças Ocultas, um Port D'Amesterdam com que despede um Brel eterno, mas é também sanfona rural nordestina, que também exige lenço branco em punho pronto para entrar em acção, ou sons retirados por palhaços em circos vazios, e tocadores solitários nos burgos de um Paris qualquer. E é sobretudo a lembrança do senhor Fioravante, a tocar só para mim, no sejas bem vinda mais belo que tive na vida.

Monday, June 13, 2005

Geninho

Obrigada.

Sunday, June 12, 2005

Acordar

Esta noite vieste de novo, como em tantas outras, desde que o tempo é tempo.
Não trazes anjos contigo, e o acordar não se faz de doçuras acariciadas. Fica um peso de culpa sem saber bem pelo quê, ou sem se atrever a nomear, mais honestamente. Fica um amargo de boca pela vida suspensa, ou adiada, gostamos de pensar, para outra volta à terra, num balão mais seguro que não se rasgue com os ventos do norte. Faz-me só o favor de estar bem, até eu poder voltar a acariciar os teus cabelos.

Friday, June 10, 2005

Oxalis Pes Caprae


oxalis-pes-caprae azeda
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Chegas com os primeiros calores, sou transportada a um campo onde nos deixam correr durante intervalos de lavores e orações. Alheamo-nos dos procedimentos que ainda não entraram na nossa vida, que para tal haverá tempo, para sermos adultos e pensarmos em higiene, em cautelas que mandam passar-te por água corrente e limpar-te das impressões deixadas por cães, gatos, e outros bichos que se passeiam pelo campo e que marcam território. Ainda consigo sentir o sabor das azedas que me invadem as papilas, acre e bom.

Thursday, June 09, 2005

É verdade


foto05
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Disse a Elis que se Deus tivesse voz, cantaria com a do Milton.

Papaver Rhoeas


papaver-rhoeas papoila
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enquanto me prendem raízes à terra, se enlaçam e me têm segura, enquanto esta pétala ainda não cai, está assim, só inclinada por um sopro de vento mais forte, enquanto não me extirparem sei que continuo, mas só aqui, por mais água que me dessem num tubo de vidro perderia as mãos rubras e cessaria de ser

Zangukenu *


musseque by Steven Le Vourc'h
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Caminhos de musseques

Caminhos dos musseques
lá onde a areia entra pelos sapatos
daqueles que têm sapatos
lá onde o sol se filtra pelas fendas
pelos buracos dos pregos
dos tectos de zinco.


Caminhos antigos.
Caminhos antigos como o Mundo.


A cidade empurrou os musseques
e o cacimbo caiu mais de mansinho
escondendo as figuras esguias
e os rostos de chumbo.



onde a esteira cobre o chão varrido todas as manhãs

onde a fuba substitui todas as claridades

onde a cerveja escorre pouco
porque não há dinheiro de comprar.


Caminhos antigos
onde a eletricidade começa a fazer circular
“idéias estrangeiras”
onde os motores dos carros
acordam as madrugadas das crianças
que antigamente ouviam passarinhos.


As fendas, os muros, os tectos
os buracos dos caminhos
esboroando-se no passado
alcatrão penetrando e desmentindo a mudança
cimento e cal erguendo os muros cinzentos das fábricas
saias lutando contra os panos das velhas
telefone até.


Nas almas... um grande vazio
preenchido pelos merengues que vêm de fora.


Lá – caminhos da vida
Lá no mato. Lá no campo. Lá na floresta. Lá no estrangeiro.
Lá onde se nasce, vive e morre todos os dias
com kambaritókué ou sem ele
com um lençol simples ou uma vala comum
morrendo apenas é que tudo acaba.
A vida tem de ser dignamente vivida.
Vamos juntar as nossas cobardias
os nossos sofrimentos
as nossas ansiedades
nossas angústias
nossos sorrisos
nossos sarcasmos
a nossa coragem
nossas vidas.
Vamos
Lá – no musseque – areais vermelhos
onde passam os caminhos da vida
e vamos
dizer
corajosamente
às crianças que esperam o nosso exemplo
que este quintal
tem de ser estrumado com sangue
adubado de sofrimento
cultivado com as dores
mangueiras
anoneiras
gindungueiros
frutificando ao sol e ao luar
para quê dizer mais versos
que só o povo entende?

Ernesto Lara Filho

*Levantai-vos



Maninhos

É divertido ouvir os angolanos. A eleite angolana fala igualzinho aos portugueses. Já o povo tem um sotaque diferente - os nasais são agudos, espanholados (Luánda, Án-gola, páo, máe); alguns "e" e "o" são fechados (dêla, côla). Nos meus ouvidos autocentrados, eles soam como estrangeiros falando o português do Brasil.
Mas a surpresa é quando cantam. Se a música for angolana ou portuguesa, o sotaque é português. Mas se o cantor ataca de música brasileira, o sotaque se torna carioca de gema, com todos os dji, tchi, amorrr e forrrrça a que se tem direito.

Ricardo freire, Postal por Escrito: Luanda, pela mão de um brasileiro, in Angonotícias

Wednesday, June 08, 2005

Datura Stramonium


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houvesse tempo e procurava-te mais moinhos para seguires, os que a vista e braços negros de sol pudessem alcançar, ignorarias as toxicidades do mundo, qualquer figueira do inferno que sabes derrotar

Tuesday, June 07, 2005

In viaggio III

Fecha os olhos. Estás de novo na Avenida João das Regras, e perguntas-te se é esse o nome e porque te veio tao rapidamente à mente, sem que contasses incluir estes detalhes. Tens uma mão na tua, dedos modificados por acidente de trabalho, dizem eles. Não sabes na altura o nome dessa avenida que te leva à ponte, e que fazes sempre pelo lado direito, ele deixa-te caminhar o possível em cima de um muro baixo, os outros não deixam, mas ele é demasiado lunático para se preocupar, as crianças caem, e erguem-se, é normal. Já sabes que as folhas de árvore que se penduram no teu muro te deixarão as mãos, braços , rosto cobertos de vermelhão comichoso. Ele também o sabe, se é que se lembra de tais pormenores mundanos, sempre ausentes da sua mente que vagueia por espaços maiores, não há recantos para alergias, anti-histamínicos, cirurgias reconstrutoras de dígitos serrados, cálculos de anestesias. Bastarão umas bolas de algodão embebidas em álcool na pele em formação. Leva-te sempre aos baloiços, leva-te um saco com pão para os patos do parque, corre contigo para o trólei. Deixa-te brincar a equilíbrios precários em murinhos velhos de quinta abandonada. E deixa-te sempre tocar as folhas.

Zantedeschia Aethiopica


zantedeschia-aethiopica
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Não apaguemos ainda a luz que nos escorre pelas frestas, pelas feridas por fechar. Acariciemos a alvura disfarçada em pétalas e não censuremos espinhos amarelos palpitantes e erécteis que se nos impõem à vista, ao tacto, ao gosto, ouvindo rumores imaginados de um lírio de qualquer Nilo, quando não convém pensar.

Monday, June 06, 2005

In viaggio II

O Egozi, que apenas uma pessoa poderá aqui identificar à primeira, deu-me uma máquina de escrever, assim, de improviso, com um sorriso rasgado. Não sei bem quantos anos teria eu, mas eram poucos, o que é sempre relativo, certo. Essa personagem viva povoou anos duros de infância de coisas belas. Vislumbro-o agora donde estará, ambos pressentindo que não está ainda pronto para voltar a indossar vestes terrenas, e lembro o seu sorriso de dentes perfeitos, todos seus, tirando um que obrigou o doutor a arrancar, por muito que este lhe dissesse que estava de perfeita saúde. Pois ao Egozi não lhe importaram essas conversas de nevralgias, se lhe doía onde estava o dente, fora com ele. Lembro o seu sorriso muito mais aberto, adivinhando matreiro que a maquineta me fazia sorrir por dentro muito mais do que a boneca gigante que falava. Era sábio, o Egozi. À gaiata (e a ele, for that matter) pouco lhe importava o clanque clanque das teclas perturbando ouvidos alheios. As canetas e blocos sem fim tinham o seu lugar próprio, mas a máquina...ah a máquina era outra coisa... Não era assim como esta ao lado, ai pois não, mas não estraguem a recordação com pormenores rígidos, se faz favor. Era um caminho andado para as modernas, que agora repousam em prateleiras ou em lixeiras, substituídas por estas que guardam memórias e tudo fazem em silêncio conveniente, com um ventilar aqui e ali, mas daqueles que nao incomodam ouvidos. Aquela trazia inovações que dispensavam frascos de corrector branco, que julgam? Mas a campaínha de aviso de chegada à margem imposta, essa ninguém lhe tirava.

Sei que de vez em quando me deves espreitar, Egozi, mas sinto a tua falta à mesma. Calculo que saibas que há algum tempo atrás, quando entrei naquele local com odor de incenso rasgada por dentro, foste tu quem desejei ter ao pé de mim. Não pedi que regressasse um amante perdido, um amor desta e doutras vivências. Pedi que me desses a mão, e tive saudades tuas. Tantas. Tu nunca me fizeste chorar.

Friday, June 03, 2005

tensão, profusão de canetas ou a antevisão de catástrofe narcisista


pelikan
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É tal a profusão de personagens e suas respectivas estórias que quase (quase porque a narradora manda pouco, mas ainda alguma coisa, pelo menos por enquanto) se impõem em contos, cada qual exigindo um espaço próprio, pouco dadas que são a promiscuidades. Uma delas vem insistente, nos últimos tempos, faz demandas e amua, por não lhe ser dada atenção exclusiva. Não vai fazer monólogos (está bem, talvez alguns, mas poucos, segundo promete), sugere com altivez e nariz arrebitado que mercia bem uma escriba mais dotada. Por cá o calor veio pegajoso, as veias palpitam muito além do que devia ser suportável pela nossa veste corpórea temporária. Quando lhe é permitida a palavra, a escriba promete tentar não imiscuir-se demais na vida de M., a tal altiva. De pouco serviria, aliás. Elas ganham vida própria, seguem caminhos que fogem a sinopses planeadinhas, e borrifam-se nos nossos planos.

Thursday, June 02, 2005

Retalhos do Chico

Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo
Da gente
Preciso conduzir
Um tempo de te amar
Te amando devagar
E urgentemente
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente
Prefiro então parir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente
Depois de te perder
Te encontro com certeza
Talvez no tempo da delicadeza
Onde não diremos nada
Nada aconteceu
Apenas seguirei como encantado
Ao lado teu.

Todo o Sentimento, Chico Buarque

Wednesday, June 01, 2005

Com olhos de ver

Queixa das almas jovens censuradas

Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho

e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
p'ra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte

Natália Correia, in O Nosso Amargo Cancioneiro

Ela sabia

Natália Correia, Arquivo DN

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Minha amada Rita,

que melhor momento para te escrever que ao som da Queixa das Almas Jovens Censuradas, da minha Natália, que o José Mário soube ler como poucos. Nem é preciso dizer que tenho todos os poros arrepiados, de tão lindo que é, tão trágico, tão verdadeiro, em cada sílaba. Somos amigas retomadas de outras vivências idas e por enquanto esquecidas, reencontradas e reafirmadas no que nos une nas circunstâncias mais surreais, como de resto a vida que nos rodeia o é. Surreal. Vejo no amanhã as queixas que a tua alma sempre não censurada produzirá, e imagino-me sentada numa plateia, assistindo ao teu teatrar mais vero que a vida. Serão também bilhetes para o céu levadas à cena num teatro, como ela diz.