Friday, May 19, 2006

Trás-os-Montes


Primeiro o caminho, longo, longuíssimo, sem fim. Estranha sensação num país de dimensões tão reduzidas. Quando comecei a viajar pelo país em que me refugiei, o primeiro assombro foi o da diversidade. De região em região abre-se sempre a porta para um mundo diferente.
A ordem veio da avó, e numa família matriarcal, embora algo disfarçada, não é boa ideia contrariar a saia- mor. Queria tanto que fossemos à minha terra… diz ela, com ar inocente. Talvez a loucura da família tenha sido acentuada por esse senso de não pertença, de nascer num local e tomar outros, em continuum, como seus, de forma a que já não se sabe realmente de onde se é. Nascida no Brasil, passada por e baptizada em castelhano numa Argentina já desaparecida, a Maria de la Concepcion voltou ainda menina para a terra de seus pais, que por seu lado já nem sabiam bem se eram portugueses, galegos ou uma espécie híbrida com sangue de Léon e, enfim, reconheçamos apesar do horror, Castilla. Pois, verdade, está bem confuso o texto.
Quando nesta família de desvairados se decide fazer algo, há que saber que, seja um mero almoço dominical ou um casamento, seremos sempre muitos. A mim coube-me viajar num carro alheio com um tio fantástico com ar de cigano, com direito a dente de ouro e tudo. Sobrevivi às curvas do Minho, de onde partimos, e já ia mais sossegada numa das estradas mais mortíferas do país (os portugueses detém os recordes mais macabros do planeta). Mas aquilo não tinha fim possível, parecendo-me na altura mais longa a viagem que a travessia aérea até ao continente americano. A desolação, a paisagem agreste. Primeiro vem o sentido do nome. É mesmo trás os montes, posso confirmá-lo. Nada como experiência em campo para compreender melhor episódios estudados em aulas de história. É provavelmente a área menos habitada do país.
Saídos da auto-estrada, serpenteando por estradas estreitas, o sorriso do tio condutor ilumina-se, e começa a explicar-me com ar orgulhoso as inúmeras cruzes de pedra plantadas na beira da estrada. Eu, que já imaginava um profundo sentido religioso do povo, sou informada de que as cruzes assinalam o local de morte de pessoas. Começa a fazer-se luz. A zona desértica é também a com maior índice proporcional de assassinatos do país (pelo menos até há algum tempo atrás, era assim). O riacho passa nas minhas terras e não nas tuas, moveste a cerca para o teu lado, desgraçado, toma lá para aprenderes. Ora bem, não é à toa que o império romano teve tantas dificuldades em anexar o noroeste da Península Ibérica. Em 27 a.c., a Lusitânia e maior parte da península eram de domínio romano, mas só em 216 o povo guerreiro que vivia nas montanhas pousou armas.
O sangue quente das gentes assustou-me menos que a condução do meu tio. Sentia-me protegida por uma tia avó que bradava na ausência de coisas essenciais como a presença de uma salada que faltava à refeição. Quando ela começou a falar, tornámo-nos figuras respeitadas na terra. Ariscos ao primeiro contacto, calorosos quando detectam que somos inofensivos. Quer dizer, quase.
A carne mais deliciosa jamais provada, as inúmeras fotos de cães (meu irmão devia fotografar algo do nosso agrado e, à falta de modelos humanos, os cães foram perfeitamente fotogénicos), o único irmão sobrevivente da minha adorada bisavó, exemplar único dessa raça dura, as casas de pedra escura, o pressentimento da magnífica presença de lobos, com quem minha avó teve encontros que a assustaram para esta e outras vidas. Enfim chegados a Avelanoso, essa terra que não se sabe bem se ainda fica em Portugal, escutando um novo dialecto, encontrámos a casa onde a família viveu, antes de partir (não adianta, são bichos irrequietos mesmo) novamente, desta vez para quentes paragens africanas. Minha avó decidiu não lá passar muito tempo, sobretudo depois de uma antiga vizinha, que se lembrava dela em pequena, lhe ter dito que estava muito gorda. No nosso próximo regresso, evitará passar por aquela rua.

4 comments:

Anonymous said...

Conheço um pouquinho de Portugal e corre em minhas veias uma boa parte de sangue português, mas há tantos séculos que sou sempre viajante quando por aí passo.
As dimensões pequenas e a impressionante diversidade marcaram também algumas dessas minhas visitas. Dá vontade de conhecer Trás-dos-Montes.
obrigada
Raquel

Carolina said...

Isto tem a ver consigo??
Lindo texto!
Vou mandar mail e fazer uma proposta!
:)

Anonymous said...

benvenute, parole.

_+*Ælitis*+_ said...

Confesso que nao conheço muitomuito bem o Norte de Portugal mas isso logo logo muda!

Beijokas