Monday, October 16, 2006

desconversão desconseguida

Ouvira por todo o lado da falta de reconhecimento pelas dádivas da vida. Tecto, calor providenciado pela natureza ou criado pelo homem, comida de levar à boca, água de saciar garganta seca, mãe, pai, irmãos, os restantes, os queridos e os nem tanto, os bons dias recebidos na rua, a possibilidade de acordar a cada manhã, ter pernas que a levassem a destinos segundo a sua vontade, mão de estender ao próximo, dedos de entrelaçarem dedos. Parecia haver até quem encontrasse amor e passasse por ele, com ele, através dele, para ele, sem um pensamento de graças. Não seria assim, não seria ingrata, sorriria de cada vez que visse uma minúscula flor romper o cimento, cada vez que o sol lhe amornasse a pele, reconhecida por cada gota de vida que lhe fora concedida. Agradeceu ter recebido o Amor.



Por isso, quando a vida escureceu, iniciou uma longa carta a um deus, diringindo-se-lhe sem maiusculizar qualquer letra incial, maiúscula só a raiva. A carta cresceu ao longo dos anos. A ira foi-se movendo, ora submergindo, ora irrompendo de águas coléricas e turvas, marés vivas que lhe rasgavam a pele dos dedos que escreviam, e a deixavam meses a fio largada como despojo trazido pelo mar. Uma bóia. Uma mancha de alcatrão. Um pedaço de cordame que não serviu para segurar barca. Caco de vidro verde ainda cortante, indiferente ao moldar macio da água.

Ameaçou o deus com canções de amores infelizes, tragédias de faca e alguidar

se acaso me quiseres sou dessas mulheres que só dizem sim.

Nunca lhe ocorreu enviar a carta, distraída que estava ao escrevê-la das suas ameaças de desconversão, pois nem por um momento imaginou que o deus não a estivesse lendo em tempo real. Nunca lhe ocorreu também agradecer ainda assim a vida vivida, o corpo e alma vividos, depois tudo de pernas para o ar, e a memória de lágrimas escorrendo pelo mero observar do sono do outro, que a ira nunca conseguiu apagar.

3 comments:

Anonymous said...

Lindíssimo. :-*

Anonymous said...

Marés vivas do equinócio?
Barca à deriva?

"Depois tudo ficará perfeito
Praia lisa águas ordenadas
Meus olhos secos como pedras
Minhas duas mãos quebrada"
( Do poema Naufrágio de Cecília Meireles)
-sardinheira-

kanuthya said...

quel obrigada...Publiquei por promessa feita a mim mesma, tentarei publicar algumas coisas de que não gosto nada. e para mim, de verdade, sem afectação, este texto é uma porcaria. Só gosto de uma parte ínfima. estou numa luta comigo mesma :)

sardinheira Gosto de marés vivas, e agora lembrei-me de um episódio patético vivido durante umas, por sinal em São Torpes, sensivelmente em frente ao Mano Zé, Mana Bia :)