Wednesday, November 29, 2006

De traços somos feitos - I

Esperava vislumbrar, entrando na sala iluminada de cores improváveis, uma figura bizarra. Talvez fosse mesmo uma exigência sua, além de esperança, encontrar uma mulher de saia impossivelmente comprida, lenço cor de fogo segurando os cabelos, mil e uma pulseiras chocalhando nos braços, longos dedos, todos eles anelados. Tivera o prazer desta visão passeando-lhe pela imaginação, a antecipação do efeito estético que causaria, mãos, dedos e anéis de pedra colorida, pegando as suas mãos, virando-as, percorrendo a palma, descortinando as linhas, uma a uma. Queria uma quiromante que houvesse herdado algum saber milenar, não uma curiosa new age que tivesse frequentado trinta e dois cursos dos eventos ocultos, palestras e workshops nas primeiras sextas-feiras de cada mês, inscrição 20 euros, com direito a amuleto benzido por mestre Yogi.
As lâmpadas coloridas, essas viu entrando na sala, já contente, como contentes ficamos quando vamos encontrando pelo caminho as placas de localidades tal e qual nos indicam os mapas.
A primeira surpresa foram os brinquedos no chão. Entrando em lugar assim, a última coisa que nos ocorre é olhar para baixo, controlando o itenerário preciso dos nossos pés; seguimos a linha horizontal que o olhar nos proporciona.
A curta caminhada é interrompida pelo craque vindo de baixo e pelo desconforto de algo duro sob o pé, primeiro compacto, em seguida multiplicando-se sonoramente por diversos pedaços. A luz não é clara na sala do oculto, e ele tem de se baixar para descortinar uma miniatura de carro de bombeiro, agora desfeita; soltou-se a mangueira, partiu-se o vidro frontal, jaz por ali uma porta vermelha.
Não tenta recolher os despojos, mas pede desculpa instintiva e imediatamente, sem obter resposta.
Os olhos voltam a focar a linha que a sua altura permite.
Há mesa, sim, redonda como esperava, mas em vez de mulher aciganada vê um miúdo. Filho da madame, certamente, são sempre madame qualquer coisa. O miúdo fala, a voz chega-lhe desfasada da imagem, sólida, não a infantil que se espera. A voz vem igualmente destruir a esperança no acerto da idade, as coordenadas são falaciosas, nenhuma criança tem uma voz assim.
Pensa entrar na brincadeira e senta-se, como se acreditasse de facto ser consultado por ele, como se não soubesse que dali a pouco, a qualquer instante, entrava pela outra porta
desculpe a demora, o meu filho incomodou-o?
uma mulher de lenço sobre vasta cabeleira e saia rodada, arrastando pelo chão.
A voz impossível do miúdo não se volta a ouvir, e isso fá-lo perceber que não tem ideia do que ele havia dito instantes antes.

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