Sunday, May 22, 2005

In viaggio I

A garota aportou numa Portela perdida, pela mão de uma mãe leoa destroçada, pela perda da sua terra, pela incerteza, pela busca da família espalhada em fuga aos tropeções, sem pré-aviso, como todas as catástrofes o são. Nos corredores cinzentos que acolhem as gentes armadas em pássaros, uma familiar jovem, que via chegar milhares, que não compreendia, que chorava. Desse primeiro tempo ficou a essa garota o refúgio na casa de uma tia-avó Ana, na baixa lisboeta, a ironia do nome de uma rua de felizmente ex-colónias, com o seu marido louco, a quem ameaçava com uma batedeira de bolos em pleno funcionamento, quando os disparates a exasperavam além da conta que uma algarvia amarafada pode aguentar. E ficou a visão, antes da garota ter sequer dois anos de idade, de um quarto minúsculo, atolhado de retalhos de tecidos de todas as cores, sobras de encomendas finas de senhoras, um mundo de trapos, como os que a rodeavam, vidas em farrapos, e o agradecimento de pão para as suas bocas, quando o pão da alma falta. No meio do caos, há essa visão, da belíssima Ana, que sorri, abraça, pega em retalhos e faz vestidos para bonecas inexistentes da garota.

1 comment:

Anonymous said...

...uma memória garota que nunca mais cresce, mas fica imutável no continum que é a vida.
Estas memórias têm uma particularidade, todas as suas variáveis são dependentes das pessoas que têm o controlo sobre quem ainda pouco sabe, mas já sente. :)
jinho soraia