Do cão
©Foto de José Alves
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O que intrigava Frânio era se o cão não queria a vida ou se
era a vida que não lhe queria.
- Onde está ele?
- Lá, no mesmo sítio. Só à espera mesmo. Frânio falava
arrastado, palavras voavam difíceis no ar espesso de Março.
- E cão lá espera alguma coisa?
- Esse espera. Que a não vida lhe leve.
- Você tem cada uma. Cão não conceptualiza. Para isso
esperar, teria de pensar. Na vida, na morte.
- Não digo assim que pensa na morte. Só na não vida.
Agora que a noite descera, Tuca pensava nas palavras de
Frânio. O manto escuro não trouxera sequer uma brisa piedosa. Esse cão lhe dava
raiva já. Invadia o descanso do serão. Esperava ouvir um chiar de pneu, um
ganido e que se acabasse tudo de uma vez.
Não era a morte que lhe perturbava. Era essa espera angustiada pela
reposição de equilíbrio. A coisa viva tinha de ter instinto primordial. Por que
se entregava dessa forma?
Irritado com sua quase obsessão, ergueu-se do sofá e
espreitou pela janela mais uma vez. Não adiantava. Continuava ali, no meio da
rua, respirando ainda nessa improbabilidade absurda, com tantos carros e
kupapatas a passar, nenhum que lhe acertasse e repusesse o seu sossego.
Nada.
O cão não parecia incomodado. Não jazia em estertor, não
exibia ferimento, não exalava lamento. Sereno em sua entrega.
Cão sofrerá de idiotia ou loucura como os malucos que
caminham horas junto da via, vociferando diálogos com quem não vemos e se atravessam diante dos carros
que lhes esmagam?
Não vocifera esse cão, será um louco manso, sereno e
ignorante, lhe falhou a centelha que leva animais à auto-preservação.
É magro o cão, mas nunca lhe havia pensado como infeliz. O
lombo é falho em pêlo já, ou desde sempre, as orelhas cobertas de crostas e
outras feridas ainda abertas, ninguém lhe cuida ou enxota as moscas que o
perseguem. É isso, decide então. Cão infeliz não tem, esse é só como os outros
que vê por aí, não tem noção do perigo, de como vai cessar de viver a qualquer
instante. Feliz é ele, que nada sabe ou entende.
Manhãzinha sai para o trabalho e cão não mais está. Acordou
para a vida, pensa, pela ausência de sangue no asfalto escasso.
-Viste, Frânio? Cão afinal ganhou juízo, ou alguém o xotou
finalmente dali.
- Lhe encontrou.
- O dono?
- Tinha querer. Não me acreditaste.
- Se explica, só.
Frânio o olhou entre o que não sabia definir, pena e
descrença na compreensão. Doutor, doutor, e nada compreende da vida.
- Sossega agora.
Meia volta e reentrou na casa, portão a uns passos dali.
- Maluco, esse.
Tuca entrou no carro, depositou os calhamaços no banco do
passageiro e seguiu, rua finalmente livre.
Frânio caminhou para o fundo do quintal, puxou o banco e
sentou sob a mangueira, pés junto de terra revolta.
Noite funda, se acocorou junto do cão. Cheirava mal, o pouco
pêlo, a caspa, as feridas, o pús, a noite lhe dava algum descanso das moscas,
as pulgas não tiravam folga com ou sem luz do sol. Lhe afagou. O primeiro afago
do cão. Que sentiria. Que pensaria. Cão ficou só quieto, aceitando tudo como de
costume. Leu nos olhos, como já lera o olhando só de mais longe. A proximidade
só lhe confirmava. A vida não tem querer, mas esse cão tinha. As duas mãos o
afagavam agora junto do cachaço. O olhar seguia o mesmo, no pedido. O estalar.
Tuca ainda pensaria que o havia feito para repôr o seu
sossego, a ordem da rua limpa na suja cidade. Não sabia nada. O cão sabia.
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