Chagas de Salitre, Ruy Duarte de Carvalho
Olha-me este país a esboroar-se
em chagas de salitre
e os muros, negros,
dos fortes roídos pelo vegetar
da urina e do suor
a carne virgem mandada cavar
glórias e grandeza
do outro lado do mar.
Olha-me a história de um país perdido:
marés vazantes de gente amordaçada,
a ingénua tolerância
aproveitada em carne.
Pergunta ao mar, que é manso
e afaga ainda a mesma velha costa erosionada.
Olha-me as brutas construções quadradas:
embarcadouros, depósitos de gente.
Olha-me os rios renovados de cadáveres,
os rios turvos de espesso deslizar
dos braços e das mãos do meu país.
Olha-me as igrejas restauradas
sobre ruínas de propalada fé:
paredes brancas de um urgente brio
escondendo ferros de educar gentio.
Olha-me a noite herdada,
nestes olhos de um povo condenado a amassar-te o pão.
Olha-me amor, atenta podes ver uma história de pedra
a construir-se sobre uma história morta
a esboroar-se em chagas de salitre.
in A decisão da idade