Sunday, November 12, 2006

Doidinho



Já não lia José Lins do Rego há uns bons anos, após Riacho Doce e Cangaceiros. Cada um deixa-me sempre a doce vontade de ler tudo o resto que ele nos deixou. Tenho um estranho fascínio pelo sertão nordestino. Recordo a primeira vez que entrei na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Minto. Já lá tinha estado umas outras duas vezes,talvez, meu avô e minha tia levaram-me várias vezes a visitar diferentes locais no polo. Recordo agora especificamente a primeira vez que lá entrei já como estudante. Devo lá ter ido em busca de algum artigo obscuro, necessário para preparação de matéria. De que matéria se tratava, não faço a menor ideia, visto que uma vez lá entrada me deparei com os maravilhosos arquivos arcaicos, dispostos segundo diferentes tipos de organização, é certo. Pouco tempo depois já lá estavam, claro, os computadores dispostos ao longo de longuíssismas pareds, mas confesso que apesar de ser grande - e eficiente, if I may add - utilizadora dos mesmos, tomava conta de mim a vontade de discorrer com dedos as antigas fichas de catálogo. Corredores de autores, corredores temáticos. Os meus propósitos de estudo foram naturalmente por água abaixo. Em vez de buscar Goethe ou a clausura progressiva das vogais do português europeu, finquei pé junto das gavetas letra S, sertão, saciando sede de secas terras. E foram tardes fantásticas, aquelas, como as eram também no Instituto de Estudos Brasileiros, esse já dentro da faculdade, imersa nas aventuras de Dadá e Corisco, Virgulino e Maria Bonita, nas canções que imortalizavam os feitos do cangaço.


Se é inteiramente autobiográfico este livro, desconheço por ora. Mas é-o em grande medida.





(ilustração de literatura de cordel nordestina)

Topei com esta breve crónica do autor, e não pude evitar, na minha neurose inofensiva para terceiros (segundo informações a que dou crédito)que me faz estabelecer relações entre tudo e mais alguma coisa, desejar escrever também algo com este título. Pronto, está bem, o adjectivo desapareceria, admito.

"Adeus, doce França

Volto hoje às minhas criaturas, aos rudes homens do cangaço, às mulheres, aos sertanejos castigados, às terras tostadas de sol e tintas de sangue, ao mundo fabuloso do meu romance, já no meio do caminho. Os dias de França me deram uma sensação de pausa, de espanto, de novos contactos sonhados desde menino. Vi terras por onde andaram os doze pares de França, os heróis do meu Carlos Magno, lido e relido como história de Trancoso. Vi terras do sul, o mar Mediterrâneo, o mar da história, o mar dos gregos, dos egípcios, dos fenícios, dos romanos. Mas o nordestino tinha que voltar à sua realidade, à realidade maior que a história do mundo, isto é, à história dos seus homens, dos cangaceiros brutais, carregados de vida bárbara, de instintos cruéis de uma força, porém, que não se extingue nunca, porque é a energia de uma raça de homens mais duros do que as pedras dos seus lajedos. Volto aos "Cangaceiros" e desde logo tudo o que vi e senti se refugia no fundo da sensibilidade, para que a narrativa corra, como em leito de rio que a estiagem secara, mas que as águas novas enchem, outra vez, de correntezas. Volto ao terrível Aparício que mata igual a um flagelo de Deus, ao monstruoso Negro Vicente, ao triste Bentinho, ao místico Domício, aos umbuzeiros carregados de frutos, aos mandacarus de floração de sangue, aos cantadores de estrada, às mulheres sofredoras, às noites de lua, aos tiroteios, ao crime e ao amor, à poesia barbaresca e vigorosa de um povo que é maior do que a terra que o criou. Volto contente e disposto a tudo. Adeus, doce França. Agora os espinhos me arranham o corpo e as tristezas me cortam a alma."

José Lins do Rego, in O Melhor da Crónica Brasileira, José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1997

1 comment:

Carolina said...

Na verdade desconhecia este autor. Vou fazer uma pesquisa.
Parece-me mt interessante!