Wednesday, February 01, 2006

Lusofonia Peregrina

Conselho

Sê paciente; espera
Que a palavra amadureça
E se desprenda como um fruto
Ao passar o vento que a mereça.


Eugénio de Andrade


Parece que Viriato, pastor escolhido pelo seu povo para rei da Lusitânia, nascido num belo local chamado Serra da estrela, falava celta. No frio da serra, sentado diante o fogo, entre os planos de batalha e o contar sonhador de estrelas, poderia ele imaginar, nos poucos momentos em que repousava depois de batalha contra o império romano, que o seu povo viesse no futuro a falar uma língua criada a partir da que os seus adversários falavam?
Quase até à idade adulta, não me via como portuguesa, procurando aferrar-me a uma outra terra, a que me havia visto nascer. O plano não resultou bem, e a culpa, sim, a culpa, é da música, da poesia, da língua. Tinha razão o vosso amado Pessoa, a quem por vezes chamo Fernandinho, como imagino fazia Ofélia Queiroz, a destinatária de todas as ridículas cartas de amor.
A minha pátria é a minha língua. A frase comporta neste momento da minha vida um significado difícil de explicar. Não somos uma janela sobre o oceano, o último naco de terra do continente: somos mesmo um barco sempre prestes a soltar-se do frágil porto. José Saramago escreveu sobre esta Jangada de Pedra, a Península Ibérica separa-se do continente e vaga sobre as águas. Fiz da língua o meu barco e assim viajo livre num infinito feito de lugares, ajustando de vez em quando a vela dos sons, mais fechada a vogal aqui, mais aberta acolá; em Lisboa escuto a gíria dos miúdos, que não sabem que usam termos de Angola; do Brasil chegam-me as expressões que os portugueses já esqueceram, escuto e bailo ao som das mornas e colladeras de Cabo Verde e sorrio, pensando ser aquela a única nação do planeta onde não há lugar para o racismo, uma ilha como uma tela, onde todas as cores se mesclam em paz e beleza. Quiçá na impaciência de aportar no Índico, tomo como asas as sempre novas palavras de Mia Couto e voo até Moçambique, onde este escriba reinventa a língua nos seus contos feitos de terra cor de fogo, magos, gentes e animais, todos com voz própria. Dou voltas em contínuo, mas não há modo de começar a falar de Portugal sem primeiro narrar todos estes mundos, músicas e gentes distantes. É a Lusitânia feita de sons e odores, tornada Lusofonia, nação etérea sem fronteiras concretas. E como nas velhas histórias, narradas em verso para mais facilmente permanecerem na memória, esta nação errante impregna os sentidos, até quando se torna pele; não a chamamos de nossa, somos nós que lhe pertencemos.



* Escrito especialmente para a Sacripante! A escriba agradece a útil sessão de análise, gratuita e prazeirosa.

2 comments:

Carolina said...

Excelente conselho do POETA!
Então o Sacripante, conta consigo!
MT bem!
Sobre o Quintana, parece que afinal há dois, respondi-lhe no meu blog!
:)

Anonymous said...

ah, mi era sfuggita la tua identificazione nei commenti su Herzog.
Che bello questo articolo con la sonorità portoghese (più bello ancora che in italiano, perché così è la lingua che parla di se stessa)
Stai bene.
F