Thursday, May 18, 2017

Do cão

                                                       ©Foto de José Alves


O que intrigava Frânio era se o cão não queria a vida ou se era a vida que não lhe queria.
- Onde está ele?
- Lá, no mesmo sítio. Só à espera mesmo. Frânio falava arrastado, palavras voavam difíceis no ar espesso de Março.
- E cão lá espera alguma coisa?
- Esse espera. Que a não vida lhe leve.
- Você tem cada uma. Cão não conceptualiza. Para isso esperar, teria de pensar. Na vida, na morte.
- Não digo assim que pensa na morte. Só na não vida.
Agora que a noite descera, Tuca pensava nas palavras de Frânio. O manto escuro não trouxera sequer uma brisa piedosa. Esse cão lhe dava raiva já. Invadia o descanso do serão. Esperava ouvir um chiar de pneu, um ganido e que se acabasse tudo de uma vez.  Não era a morte que lhe perturbava. Era essa espera angustiada pela reposição de equilíbrio. A coisa viva tinha de ter instinto primordial. Por que se entregava dessa forma?
Irritado com sua quase obsessão, ergueu-se do sofá e espreitou pela janela mais uma vez. Não adiantava. Continuava ali, no meio da rua, respirando ainda nessa improbabilidade absurda, com tantos carros e kupapatas a passar, nenhum que lhe acertasse e repusesse o seu sossego.
Nada.
O cão não parecia incomodado. Não jazia em estertor, não exibia ferimento, não exalava lamento. Sereno em sua entrega.
Cão sofrerá de idiotia ou loucura como os malucos que caminham horas junto da via, vociferando diálogos com quem  não vemos e se atravessam diante dos carros que lhes esmagam?
Não vocifera esse cão, será um louco manso, sereno e ignorante, lhe falhou a centelha que leva animais à auto-preservação.
É magro o cão, mas nunca lhe havia pensado como infeliz. O lombo é falho em pêlo já, ou desde sempre, as orelhas cobertas de crostas e outras feridas ainda abertas, ninguém lhe cuida ou enxota as moscas que o perseguem. É isso, decide então. Cão infeliz não tem, esse é só como os outros que vê por aí, não tem noção do perigo, de como vai cessar de viver a qualquer instante. Feliz é ele, que nada sabe ou entende.
Manhãzinha sai para o trabalho e cão não mais está. Acordou para a vida, pensa, pela ausência de sangue no asfalto escasso.
-Viste, Frânio? Cão afinal ganhou juízo, ou alguém o xotou finalmente dali.
- Lhe encontrou.
- O dono?
- Tinha querer. Não me acreditaste.
- Se explica, só.
Frânio o olhou entre o que não sabia definir, pena e descrença na compreensão. Doutor, doutor, e nada compreende da vida.
- Sossega agora.
Meia volta e reentrou na casa, portão a uns passos dali.
- Maluco, esse.
Tuca entrou no carro, depositou os calhamaços no banco do passageiro e seguiu, rua finalmente livre.
Frânio caminhou para o fundo do quintal, puxou o banco e sentou sob a mangueira, pés junto de terra revolta.
Noite funda, se acocorou junto do cão. Cheirava mal, o pouco pêlo, a caspa, as feridas, o pús, a noite lhe dava algum descanso das moscas, as pulgas não tiravam folga com ou sem luz do sol. Lhe afagou. O primeiro afago do cão. Que sentiria. Que pensaria. Cão ficou só quieto, aceitando tudo como de costume. Leu nos olhos, como já lera o olhando só de mais longe. A proximidade só lhe confirmava. A vida não tem querer, mas esse cão tinha. As duas mãos o afagavam agora junto do cachaço. O olhar seguia o mesmo, no pedido. O estalar.

Tuca ainda pensaria que o havia feito para repôr o seu sossego, a ordem da rua limpa na suja cidade. Não sabia nada. O cão sabia.



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Sunday, May 03, 2015

Não há recomeços.

Tuesday, September 20, 2011

de onde somos

Primeiro, busco saber que fluído corre até à pena. Gostava de me certificar não se tratar de fel. É feio. Faz mal. É fétido.
Ninguém deve criticar o seu próximo por este ter e valorizar uma vida mais tranquila do que a que conheceu, talvez, no passado. É humano. Buscamos conforto, um tecto seguro que não nos caía a cada instante em cima e deixe entrar vento gélido ou traga a imúndice da rua. Limpamos o calçado, ao passar a soleira da porta, deixando lá fora os lixos do mundo. Limpamos também os olhos, os ouvidos, queremos os momentos de paz que merecemos.
Muitos angolanos e naturais de Angola residem em Portugal. Não, não é a mesma coisa, necessariamente. Há naturais de Angola que sempre se consideraram portugueses. Não é crime. Nem errado. Simplesmente é. Há também os que se consideram ambas as coisas, angolanos e portugueses. Natural. Vivências marcantes e longas, afectos, raízes em ambos os locais. Na modernidade torna-se imperioso melhor compreender as múltiplas identidades, que nos devem enriquecer, ao invés de trazerem conflito interior, dúvida e dever de escolhas singulares. A muitos a vida levou a multiplicidades. Contudo, há, de um modo muito geral, um carinho e especial orgulho, nestas pessoas, quando referem a sua naturalidade. Muitos continuam a afirmar que esta última se sobrepõe a questões de nacionalidade, sendo fulcral nas suas identidades. São, sempre foram, sempre se sentiram, continuam a sentir-se angolanos.
Reunem-se, ainda, tantos anos depois, em funjis de domingo. Encontram-se anualmente, revendo colegas e amigos de escola, para confraternizar. E recordar. De memórias somos feitos.
Repetem, com orgulho e, não raras vezes, lágrimas, o seu amor pela terra mãe. E pelas pessoas, falam muito das pessoas. As pessoas continuam lá. Angola não passou a ser desabitada desde que saíram, em convulsão, de vossas terras natais ou de longa permanência e com a qual dizem manter profundos laços de afecto.
Hoje podem recordar ainda melhor. Já não dependem de encontros e troca de fotografias, de visionamento de filmes em salas escuras improvisadas, em que recordam as visitas à Senhora do Monte, os piqueniques e tardes de praia na ilha ou no Mussulo, as idas ao Miramar, os passeios na Restinga. Podem, ainda, quando desejam, seguir a actualidade desses países. E assim o faz grande parte. A partir de suas casas, acedem a sites, a redes sociais, e confraternizam agora segundo as excelentes possibilidades que nossa era permite. Aqui. Neste canto do mundo.
Levanto-me e vou buscar um copo de água. Posso fazê-lo tranquilamente, de tal modo que o gesto não me faz reflectir. É somente um entre muitos gestos do meu dia-a-dia. Tomo a minha água sem receio de contrair uma doença, de forma geral. Caso a contraia, raridade, posso deslocar-me até ao posto de saúde mais próximo. Posso reclamar do tempo de espera, do atendimento. Mas ele chega. Se não chegar, posso reclamar. Posso circular livremente. Sem que a polícia me maltrate, sem que me peça suborno, sem que ponha e disponha da minha vida, como se esta se tratasse de uma folha de papel sujo, a amarrotar e jogar fora. Impunemente. Posso tentar afzer valer os meus direitos, conforme tento cumprir os meus deveres. Muita coisa pode não funcionar pelo melhor, mas a minha voz é escutada. Sem que tal signifique poder ser presa sem qualquer crime ter cometido. Resido num país em que um governo não toma para si a constituição, mudando-a a seu bel prazer. A vida está difícil, a crise grassa. Mas aqueles direitos básicos ainda ali estão. E para quem acredite e se preocupe, justamente, que estes sejam diminuídos a cada dia, existirá, quiçá, na vossa consciência, pelo menos a noção de que as realidades não são equiparáveis nestes pontos referidos.
E toma a sua água. Potável. Senta-se novamente, e continua seguindo os seus grupos favoritos, os seus fóruns, que lhe trazem notícias e recordações lindas dessa tal terra. Escuta a sua música, a música com que cresceu, ao som da qual tanto dançou e foi feliz ou infeliz.
Já saiu para a rua, no país que o acolhe há tantos anos e que também pode chamar de seu, para defender seus direitos. Não o faz pela terra que ficou lá atrás, mas que diz continuar a amar do mesmo modo. Tem todo, todo o direito de assim fazer. É livre. Quer concentrar-se no presente, tem já suas pesadas preocupações (aqui não reside ironia), quer paz e sossego. E isso também não é crime. Mas pense antes de dizer, na próxima vez, se aquela continua a ser a sua terra. E tome a sua água.

Tuesday, May 24, 2011

the enemy within

(in exame.com)


A Visão desta semana traz, como seria de experar, uma reportagem sobre o caso Strauss-Kahn.
Admito dúvida acerca da autoria textual do editorial da revista. O artigo em si, porém, leva-me a pensar que um e outro (editorial e artigo), mesmo que não tenham sido redigidos pela mesma pessoa, partilham idiotice e discurso irresponsável que leva à alimentação de preconceitos.
Da chamada na capa - "Caso Strauss-Kahn, O Mistério do Quarto 2806" - não há crítica a fazer. Inocente até prova em contrário. Basta folhear uma vez para que encontre, junto a foto destacada do indíviduo, o brilhante título que leva à página 78: "O homem que gosta de mulheres". Estou-me nas tintas para que me chamem de chata ou bem pior. Sim, a frase tem de ser contextualizada: tem origem em declarações do próprio a um jornalista do Libération, respondendo a quais seriam, em sua opinião, os pontos fracos que seriam provavelmente alvo de ataque por parte dos opositores na campanha presidencial de 2012 - "Gosto de mulheres. E depois?" (E depois, senhor Kahn, consta que um significativo número destas não goste assim muito de si, já que não parecem cair voluntariamente em seus braços...).
Mas o editorial não fica por aqui. Há que acrescentar algo à caracterização do senhor em causa: "sedutor incorrigível".
Passo para o artigo da página 78. Não me devia espantar, mas constato que o artigo é da autoria de uma jornalista. Igualmente grave e ridículo se fosse de um jornalista. Mas não deixa de ser significativo...

Wednesday, August 18, 2010

Chagas de Salitre, Ruy Duarte de Carvalho

Olha-me este país a esboroar-se

em chagas de salitre

e os muros, negros,

dos fortes roídos pelo vegetar

da urina e do suor

a carne virgem mandada cavar

glórias e grandeza

do outro lado do mar.

Olha-me a história de um país perdido:

marés vazantes de gente amordaçada,

a ingénua tolerância

aproveitada em carne.

Pergunta ao mar, que é manso

e afaga ainda a mesma velha costa erosionada.

Olha-me as brutas construções quadradas:

embarcadouros, depósitos de gente.

Olha-me os rios renovados de cadáveres,

os rios turvos de espesso deslizar

dos braços e das mãos do meu país.

Olha-me as igrejas restauradas

sobre ruínas de propalada fé:

paredes brancas de um urgente brio

escondendo ferros de educar gentio.

Olha-me a noite herdada,

nestes olhos de um povo condenado a amassar-te o pão.

Olha-me amor, atenta podes ver uma história de pedra

a construir-se sobre uma história morta

a esboroar-se em chagas de salitre.


in A decisão da idade



Friday, June 18, 2010

Graças



Se tens um coração de ferro, bom proveito.

O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo o dia.

José Saramago

Thursday, April 29, 2010

Chico Buarque fala sobre racismo.