Thursday, October 23, 2008

da gestão do acondicionamento de itens comprados

As listas de supermecado serão, aparentemente, vistas por algumas almas como orgíacas, vergonhosos bacanais (os decentes são os pratos fundos de esparguete), misturando itens de convivência improvável. Nunca soube o que era a convivência improvável.

Num momento muito escuro, há que aclamar com olés e palmas andaluzas quem nos faz rir ou sorrir.
Num momento muito escuro, há já um bom tempo, aproximo-me da caixa registadora do supermercado, apressada, apresentando umas caixas de gelado, sabores sortidos, como me havia sido solicitado (os minúsculos cubos de caramelo enterrados na cama do doce de leite, a antecipação da luta da colher de sopa em busca dos cubos, a batalha à mesa para ver quem os apanha) e pacotes de pensos higiénicos.

Sou toda pela poupança de sacos plásticos e pela preservação dos meus dedos, gelados pelo gelado. Atiro, eco-economicamente, as parcas compras para um saco.
A moça da caixa atira os seios para cima da superfície, alçando a voz em descrédito e genuína preocupação.
Então não sabe que nunca se juntam os pensos a congelados?! É que se não... ficam mesmo gelados, percebe?

Senti a boca abrir e as palavras a chegarem velozes, traqueia acima, e num inusitado impulso de compaixão quase quase mudava a vida daquela mulher, explicando-lhe as maravilhas dos pensos e das cuequinhas colocadas no congelador. Depois contive-me e agradeci-lhe.
Não é todos os dias que demonstram tanta preocupação pela nossa mais-que-tudo.

Sunday, October 05, 2008

Amado

(helenice.com)

Fazias-me moinhos para que eu corresse no terraço que me parecia imenso, e hoje sei não ser tão grande, mas aos olhos da criança é tudo grande, como deves recordar.

Fazias-me moinhos e móveis para que brincasse. Um pequeno guarda-roupa, que a avó completou com toque de ouro sobre azul, encontrando cabides minúsculos, onde se podiam suspender as minúsculas roupas. o Guarda-roupa tinha duas portas e uma gaveta. Dizes que não? É assim que o vejo, e sei bem que não te importas. As tuas preocupações escapavam em muito aos comuns. Aéreo e pragmático. A estranha combinação que creio ter de ti herdado, apesar de não bater tantas vezes contra as coisas como tu, que via sempre com curativos.
Há já algum tempo, um bom escriba, presente nas linhas alheias, escreveu algo lindo, aquando da partida de uma familiar. Duas curtas frases, caixa fechada, sem direito a comentários, sabiamente. Dizia (perdão pelo roubo descarado, D.): "Foste um anjo. És uma estrela."

Eu não sei se foste um anjo. Para mim, estiveste perto. Conheci-te de poucas palavras, as pronunciadas certeiras. Calavas ou dizias justamente o que pensavas. E, estranhamente para alguns, tal não diminuía o respeito e carinho que te votavam. Nem mesmo quando, numa qualquer tarde de Domingo, uns parentes se sentavam na sala, após terem devorado a minha farinheira, lançando para o ar mil e uma narrativas. A tua mulher viu-te levantar e dirigir para a porta, empalideceu e perguntou, a medo, Mas onde vais tu? E tu, com sorriso e o mais plácido ar, Vou para o terraço, que não tenho paciência para estar sentado a ouvir mentiras e disparates.

Fazias-me moinhos para que eu pensasse que corria nos braços do vento, como é de direito que uma criança pense.

Tinhas lendária fama de lunático. Muitos dias, que a mim pareciam ser todos, levavas-me a passear e brincar na rua. O mundo lá fora que eu conhecia pouco, os outros miúdos, que não conhecia, crescia com adultos numa terra estranha. Todos os dias me deixavas fazer parte do percurso por cima de um muro, que separava a estrada e passeio de uma quinta. As árvores do pomar atreviam-se, e espreitavam para o passeio, e eu tinha sempre de tocá-las, sentir a rugosidade da casca do ramo, tocar o verde das folhas. Que me faziam alergia, para depois chegares a casa e ouvirmos os dois que eu não podia tocar-lhes. No dia seguinte já havias esquecido mais um desses pormenores que os outros lembram. Eu agradecia e calava, enquanto tu, sorrindo como se fosse sempre a primeira vez que te fizesse tal pedido, me ajudavas a subir para cima do muro, que percorria de mão entrelaçada na tua.

Já um ano se passou, Amado. Já que, por um mistério, não fiquei, nem ficámos, nós que tanto o queríamos, com o teu nome, tomo-o para mim, e sei que não te importas e ficas feliz com o meu orgulhoso roubo. Um teu colega de juventude brincava com o teu sobrenome, dizendo, Aí vem o que antes de o ser já o é. Pelos vistos afinavas, eu que nunca te vi com nada afinar, de tal forma que decidiste que ninguém faria piada com os sobrenomes dos teus descendentes, se de ti dependesse.


Não ouvi de ti um queixume. Jamais te tinha visto doente. Sequer combalido. pensaram ainda, no início, talvez, que não soubesses o que se passava. Sabias. E a tua dignidade e amor por nós foi tão imensa que fingiste não saber.
De vez em quando penso que te vou levar ou dizer quando aí for. Depois recordo.
Prometi na altura que só contigo podia aqui regressar. Já passou um ano. E há pouco tempo, compreendi que, como criança, fazia de conta que não partiste, enquanto não o escrevesse.
Tem prontos para mim, avô Amado, os moinhos. Quero correr e pensar que ainda tenho muito que correr até ter de parar. Mesmo que não seja assim.
Até logo.