Thursday, February 24, 2005

...

Vêm ter consigo sem horas marcadas, não pedem licença para entrar e instalam-se por entre os canais turvos como os de Veneza. Pedem satisfações, não há direito, estamos cá, existimos, temos vida própria, tens obrigação da a registar, assim, em folhas soltas ou em encadernações cuidadas, o que não podes é deixar-nos penduradas in continuum.
A CGD tem uma foto ternurenta com os pés de uma garota, sobre uma caixa enfeitada de asqueroso consumismo natalício e a Dunhill promove acessórios de luxo para homem que poucos podem comprar, e tu refugias-te em fait-divers, tudo para nos deixares cá, asfixiando dentro da tua caixinha mental redutora e cansada.

Bandoleira

Pessoas que fazem compras ou fingem que as fazem, populando centros comerciais depressivos, a dona que compra alho francês ou endívias na mercearia do lugarejo, o rapaz que corre de olhos abertos para o eléctrico, um dono de restaurante siciliano, cantarolando incansável e louco num país de gente de nariz arrebitado, que secretamente, mas pouco subtilmente, inveja outras latinidades sorridentes e morenas, o triste candidato a gigolo que me baba as mãos num bar supostamente fino mas decrépito, com árabes que fogem da abstinência de Meca. A todos retiro algo sem pedir licença. E fica aqui tudo, comigo, alimentando as vidas que se criam independentes, que povoam esta massa confusa de dendrites e sinapses. Alguns dão-se bem, trocam piropos, impressões e apalpões. Outros vão cultivando odiozinhos de estimação, vários querendo ser vilões, que isso de ser herói da história é uma chatice. Esperam ser deitados e deleitados em linhas desalinhadas.